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Cinco fatos e uma pergunta sem resposta

Esta seria uma edição do Lambrequim sem Cisma. “Vou produzir artigos sobre financiamento coletivo”, disse a mim mesma e já sai anotando ideias. Mas o problema da Cisma é que ela acontece além da minha vontade, como se a cada dia eu recebesse uma peça do quebra-cabeça que venho montar. A sensação de que estou montando algo, aliás, não é de hoje. A cada nova Cisma que escrevo, chego mais perto de algo que ainda não sei o nome.

Bem, vamos aos fatos que me fizeram escrever hoje.

Fato #1: assim que leu a Cisma da semana passada, Evelyn me mandou a seguinte mensagem, por e-mail. 

Mylle, vou escrever uma crônica pra sua cisma.

Primeiro pensei em escrever uma breve resposta, mas aí cheguei a conclusão de que não seria nada breve, haha.

Posso adiantar que: não precisa ser um meditador experiente pra silenciar e desaparecer. E que é tudo culpa do capitalismo.

(Aliás, respostas em forma de crônica são sempre bem-vindas —inclusive você pode ler a crônica-resposta da Evelyn no blog dela.)

Fato #2: um dos funcionários da mercearia em que vou toda semana me contou que quer escrever um livro. No meio da conversa, ele disse que na escola não gostava de ler nem escrever, e que poderia ter aproveitado melhor o tempo de estudos. Ele deve estar na faixa dos 20 anos.

Fato #3: minha avó, de 78 anos, disse que aconselhou meu tio-avô, que tem 80 e tantos e já não consegue mais andar direito, a aprender a navegar na internet. “Se eu parar de aprender coisas novas, eu morro”, ela disse.

Fato #4: observei uma adolescente, de 12 anos, fazendo a lição de casa. Ela, que voltou há pouco tempo para as aulas presenciais, tem dificuldade em se concentrar enquanto lê os textos e, como consequência, não consegue encontrar as respostas para os exercícios.

Fato #5: passei três horas vendo e ouvindo o Yuval Harari falar (o que já daria uma Cisma à parte, aliás) e os fatos anteriores se interligaram de forma inesperada. Os vídeos que eu vi foram Como sobreviver ao século XXI – Davos 2020 e O futuro da educação.

Yuval Harari é referência obrigatória para qualquer um que queira compreender o mundo em que vivemos hoje. Seja através dos seus livros ou dos vídeos, as falas dele são essenciais e necessárias porque fundamentam muitas das perguntas que nós fazemos todos os dias. Ouso resumir o pensamento dele em uma frase: use todas as ferramentas que te agradem e estiverem ao seu alcance para se conhecer ao máximo e evitar que outras pessoas ou corporações façam escolhas por você.

Se você realizou uma sinapse atenta, acabou de perceber que essa é também a minha motivação ao escrever Cismas. Quero tanto compreender o mundo quando dividir minhas descobertas com outras pessoas. E nessa busca de tentativa e erro não bastam livros; é preciso observar também as pessoas e como elas reagem aos estímulos do mundo.

Mas agora, voltemos ao Harari. Nos dois vídeos que vi, ele faz argumentações bem parecidas, em alguns momentos chegando a usar o mesmo texto — o que é natural. Essas duas aparições públicas dele aconteceram antes da pandemia, quando estava lançando o livro 21 lições para o século XXI. Em um momento, durante seu discurso em Davos, ele desenvolve um raciocínio crucial sobre uma das questões que enfrentamos na atualidade: a irrelevância.

À medida que a tecnologia avança e as profissões vão sendo substituídas por automações variadas, mais e mais pessoas se tornarão irrelevantes para a sociedade. Isso não é algo para o futuro; está acontecendo agora. Pessoas idosas e em situação de rua são os irrelevantes do nosso tempo, assim como os oficiais 14% da nossa população que estão desempregados. Sem autonomia para se manter por conta própria, inúmeras pessoas perdem a relevância social (ponto para Evelyn e para minha avó).

A irrelevância apontada por Harari é do ponto de vista do capital, da produção. Mas, apesar de estar aposentada, é claro que minha avó continua sendo relevante para a nossa família. Ela faz doces maravilhosos e adora comprar presentes para todos — aprendeu até comprar pela internet durante a pandemia. No entanto, ela sabe, e sabe bem, que se parar no tempo vai ficar como o irmão dela: uma pessoa que dedicou a vida ao trabalho e à família, mas agora, além de perder a autonomia física, perde sua relevância ao não saber mexer num celular.

Hoje é comum ver pessoas de 70 ou 80 anos que não se interessam por celulares e nem pela internet — e tudo bem. Essas pessoas muitas vezes já contribuíram para a sociedade e recebem suas aposentadorias e pensões. No entanto (e Harari assina embaixo), aprender a usar as novas tecnologias deixará de ser uma opção para se tornar um pré-requisito, independentemente da idade. Ao mesmo tempo que as profissões são substituídas por automações, deixar de produzir na sociedade positiva inundada de informações significa se tornar irrelevante.

Existe, porém, uma maneira de ser relevante que suplanta o capital: a possibilidade que cada um de nós tem de decidir quem ficará no poder. Por pior que seja, no sistema democrático os políticos ainda dependem do voto para serem eleitos — ou seja, mesmo sem produzir um real sequer, aqueles 14% de desempregados ainda têm relevância, do ponto de vista político.

E é aqui que tudo se converge. O estudo e a busca por novos conhecimentos deixa de ser uma mera questão de produtividade para se tornar a base da nossa tomada de decisões. A partir do momento que começamos a compreender as relações de interesse que existem naquilo que recebemos de forma passiva através dos meios de comunicação (hoje, mais pela internet), começamos a questionar se a informação que acabamos de obter é a verdade que queremos para chamar de nossa. O voto talvez seja o ato político mais evidente que possamos ter, mas existem vários outros que podemos adotar, todos os dias, dentro do nosso conjunto de valores e ações.

Do ponto de vista social, artistas são irrelevantes. Eu, por exemplo, não tenho um emprego fixo, não contribuo para a sociedade com um trabalho repetitivo, durmo até tarde, não tenho carro, não tenho casa, não tenho filhos, consumo pouco. Não cumpri nenhuma das funções esperadas, pela sociedade, para uma mulher na faixa dos trinta. Mesmo assim, eu acredito que tenho relevância. Acredito que o que penso e o que escrevo tem relevância para muito além da minha família. E parte dessa crença é porque, desde a infância, eu soube que o estudo e a escrita seriam o meu caminho. Mas e quando a pessoa não sabe qual caminho seguir, será que existe alguma maneira de tirá-la do piloto automático?

Quando Harari abre o microfone para o público, uma jovem pede a ele conselhos sobre como se tornar uma melhor autodidata. Depois de uma ajudinha do mediador Russell Brand, Harari responde: mantenha o foco numa grande pergunta, aquela que te faz questionar por que o mundo é como é.

Acredito que todo artista, pensador e pesquisador tem uma pergunta dessas em mente. A minha é: como fazer uma pessoa encontrar aquilo que a move para dentro do estudo e da criação? Não é uma questão apenas de tirar as pessoas do piloto automático, mas de colocá-las em contato com a sua criatividade, sua habilidade de transformar o mundo ao redor.

Eu poderia ter perguntado ao rapaz da mercearia o que o fez deixar de ser um completo desinteressado por leitura para alguém que deseja escrever um livro. Enquanto embalava uns torresminhos, ele poderia ter me dito que foi por influência de alguém (o tio, ele citou várias vezes o tio escritor na nossa conversa) ou que era algo latente nele desde sei lá quando. 

Se você participou de alguma oficina minha, sabe que eu sempre pergunto “qual é a sua relação com a escrita?” Repito a pergunta a cada novo ciclo porque tenho interesse genuíno em saber o que leva pessoas tão diferentes a querer escrever

Escrever é inútil, é mais inútil do que o arroz que eu deveria ter colocado para cozinhar — o arroz que o Menin foi preparar assim que terminou sua aula. Nessas três horas que fiquei sentada escrevendo, ele ministrou uma aula e fez arroz — com certeza foi mais relevante para o mundo do que eu.

Última peça do quebra-cabeças: me volto para a menina de 12 anos que mal consegue se concentrar para fazer a lição de casa. Será que eu poderia mostrar algo para ela, algo que despertaria seu interesse de maneira profunda? Imagino que esse deva ser o dilema de muitos pais; mas eu não sou mãe dela e nem desejo ter filhos. Meu único super-poder é a habilidade — irrelevante e sempre em construção — de elaborar argumentos e narrativas. O que interessa a mim não interessa a ela, porque somos pessoas diferentes. Mas eu a olho e temo que, se ela continuar por esse caminho, se tornará um autômato como tantos outros, inconsciente de porque quer o que quer.

Fim de jogo: ainda faltam peças, inúmeras. As referências surgem de todos os cantos, mas o filtro de só um lugar: do mundo que a gente constrói dentro. Sem resposta, olho para o Menin que olha para o arroz e me lembro da frase de um professor de biologia que eu admirava muito: a jornada está na pergunta.

Duas da tarde. Acho que está na hora de ir almoçar.


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