Os trechos citados foram pinçados do livro O sentido da vida, do crítico literário Terry Eagleton.
1.
O sentido da vida é ter. Ter ou não ter, ter ou não ser, ser ou não ter, ser e não ter, ter e não ser, ser e não ser. Questão de mera escolha: o mundo nos intimida e a gente acolhe.
A modernidade capitalista nos brindou com um sistema econômico quase exclusivamente instrumental. É um modo de vida dedicado ao poder, ao lucro e à sobrevivência material, não ao fomento de valores humanos de solidariedade. O domínio político é mais uma questão de administração e manipulação do que de construção de uma vida em comum. A própria razão foi rebaixada ao autointeresse e ao cálculo. Quanto à moralidade, também ela passou a ser uma questão de foro privado. A vida cultural se tornou mais importante em certo sentido, com uma indústria e um ramo de produção material dedicados a ela. Em outro sentido, porém, ela minguou, reduzida a ornamento de uma ordem social com cada vez menos tempo para tudo que não tenha medida ou preço. A cultura se tornou questão de como ocupar o tempo das pessoas enquanto elas não estiverem trabalhando. (p. 39)
2.
Troquei mensagens com o golpista que aplicou o chamado Golpe do PIX na minha mãe. Ao invés de me bloquear, ele me respondeu e me xingou. Peguei os dados dele (banco, nome completo e CNPJ). Fiquei uma tarde inteira obcecada, procurando seus rastros na internet — e, para a surpresa de zero pessoas, encontrei zero informações.
Por que, afinal, alguém estaria interessado em saber qual o sentido da vida? Seria para ter uma vida melhor? Muitos homens e muitas mulheres vivem vidas extraordinárias sem a posse desse segredo; ou talvez a tenham e não o saibam. Pode ser que o sentido da vida seja algo que faço neste momento, uma coisa simples, como respirar, por exemplo. E se o segredo da vida escapa a nós, não porque está escondido, mas porque está próximo demais para que possamos vê-lo com clareza? Talvez o segredo da vida seja não um objetivo a ser perseguido, ou uma verdade a ser apreendida, mas algo que se articula no próprio ato de viver ou em certo modo de vida. Afinal, o sentido de uma narrativa não está apenas em seu fim, mas se encontra no próprio processo da narração. (p. 72)
3.
O sentido da vida é acreditar. Os que creem são melhores do que os que não creem pelo simples fato de acreditarem em algo piamente. A elevação está na crença desmedida, mesmo que essa crença seja causa e/ou consequência de uma visão acrítica sobre o mundo.
A questão “Qual o sentido da vida?” teria parecido a um hebreu antigo tão excêntrica quanto a questão “Você acredita em Deus?”. Em nossos dias, essa questão equivale, para a maioria das pessoas, incluindo parte das religiosas, a questões como “Você acredita em Papai Noel?”, ou “Você acredita em abduções por extraterrestres?”. Desse ponto de vista, há toda uma gama de seres que podem ou não existir, desde Deus até os alienígenas, passando pelo Abominável Homem das Neves e o monstro do Lago Ness. Não há evidências definitivas, e, por isso, as opiniões se dividem. Já para um antigo hebreu, a questão “Você acredita em Deus?” significava outra coisa. Pois, como a presença de Jeová era declarada pela terra e pelos céus, a questão só poderia significar “Você tem fé em Jeová?”. Era uma questão prática, não um problema intelectual, versava sobre uma relação, não sobre uma opinião. (p. 30)
4.
Comprei minha segunda casa, comprei carros, motos, drogas. Aprende comigo a aplicar golpes, sua dura! Quero que se foda a vida honesta.
Toozenbach [personagem de Tchekov] talvez esteja sugerindo que o mundo é absurdo; mas isso significa alguma coisa. Gritar “Isto é um absurdo!” evoca a possibilidade de produção de sentido. Pois o absurdo só tem sentido em contraste com a produção de sentido, assim como a dúvida só é posta tendo a certeza como pano de fundo. Caso alguém diga que a vida não tem sentido, podemos retorquir “Mas o que é isso que não tem sentido?”, e a resposta viria embalada em sentido. Pessoas que se perguntam sobre o sentido da vida em geral querem saber qual o resultado de uma série de situações; e, como a identificação de cada uma delas implica sentido, existe afinal algum sentido. Assim como é inútil duvidar da existência de todas as coisas, é difícil pensar que a vida seria um absurdo de uma ponta a outra. Pode ser que ela não tenha uma direção, ou que não tenha uma finalidade ou propósito, mas não é absurda, não é um nonsense — pois, para dizer tal coisa, precisamos de uma medida lógica que nos permita afirmá-lo. (p. 79 e 80)
5.
O sentido da vida é o corpo e o que a gente faz dele. É manejo do desejo, saber guardar, saber nutrir, saber segurar. Desejo é coisa que significa, por isso precisa ficar guardado a sete chaves. É saber que pra usar o corpo tem regra e que só pode usar como veio de fábrica. Quem dita a regra é a autoridade vigente.
É possível que a vida tenha um sentido inerente, mas de maneira que nenhum de nós poderia alcançá-lo, um sentido diferente daquele que cada um de nós constrói para si mesmo. Sigmund Freud, por exemplo, acreditava que o sentido da vida era a morte, e que todo o empenho de Eros ou dos instintos vitais era retornar à condição de um êxtase similar à morte, em que o ego não pudesse ser ferido. Supondo que isso seja verdade, e é claro que pode ser que não seja, então esse fato era verdadeiro antes que Freud o descobrisse, e permanece verdadeiro queiramos ou não aceitá-lo. Nossos impulsos e desejos podem formar um padrão de que não temos consciência, mas que é determinante para o sentido de nossa existência. Portanto, pode ser que exista um sentido da vida que ignoramos por completo e que não foi instaurado por uma força sobre-humana como Deus ou o Zeitgeist. (p.91)
6.
Quase metade do Brasil coaduna para que o país continue piorando como está. Quase metade acredita na ideia de que salvadores estão vindo aí para perseguir os ladrões, os corruptos, os golpistas — enquanto caem em um golpe atrás do outro. Depois de tantos golpes sofridos, compreensível: o gosto de impunidade fica na boca, e o que resta é acreditar, acreditar sem questionamentos, de que o herói é mítico e está aqui para nos salvar.
A linguagem permite nos vermos a nós mesmos e concebermos nossa situação como um todo. Nossa vida se dá nos signos, que trazem consigo a capacidade de abstração, a qual permite que nos afastemos de nós mesmos, em determinados contextos, que nos libertemos do jugo dos sentidos corpóreos e especulemos acerca da condição humana em geral. Mas, assim como o fogo, o poder de abstração é uma dádiva ambígua, a um só tempo criativa e destrutiva: se nos permite pensar em termos de comunidades, também nos permite destruí-las com armas químicas. (p. 28)
7.
O sentido da vida é simbólico e está na arte. Na elevação do pensamento, no estudo e no exercício da criatividade. Na reflexão e no culto ao belo, em apreciar e em produzir obras apreciáveis — em dedicar-se à arte, enfim, como quem se dedica a um caminho único e valoroso, encerrando seu fim em si mesmo.
O domínio simbólico se dissociou do domínio público, mas também foi invadido por ele. A sexualidade passou a ser vendida como uma mercadoria lucrativa, e a cultura foi reduzida, na maioria das vezes, a um bem de meios de comunicação ávidos por lucro. A arte se tornou questão de dinheiro, poder, status e capital cultural. Culturas são vendidas pela indústria do turismo em embalagens exóticas. Mesmo a religião se tornou uma lucrativa indústria, com evangelistas especializados em extrair, de seus pios e crédulos devotos, cada suado dólar que sua labuta lhes rendeu. Temos aí o pior de dois mundos. Os lugares em que o sentido costumava ser mais abundante não são mais capazes de oferecê-lo, e foram, ao mesmo tempo, agressivamente colonizados por forças comerciais, tornando-se parte daquele extravasamento de sentido ao qual haviam até então resistido. O domínio da vida simbólica, devidamente privatizado, viu-se forçado a oferecer mais do que poderia, e o resultado é que se tornou cada vez mais difícil encontrar um sentido, mesmo na esfera privada. Divertir-se enquanto a civilização arde em chamas ou cultivar o próprio jardim enquanto a história desaba à nossa volta deixaram de ser opções viáveis. (p. 41 e 42)
8.
Me chamou de doida, o golpista. Disse que eu podia usar a conversa como prova, que eu podia denunciar, abrir processo. kkkkkkkkk, repetidas vezes — e a energia foi se esvaindo, enquanto ecoava a pergunta “o que era mesmo para ser o dia de hoje?”. A realidade tem sido talentosa em sugar o simbólico.
“Em última instância”, escreve Nietzsche, “o homem só encontra nas coisas o que nelas inseriu.” Se é assim, e sua vida lhe parece vazia, por que não a preenche, como fazemos com uma geladeira? Por que lamentar essa situação aos brados, se a solução parece tão fácil? Essa teoria do significado tem uma forte coloração narcisista. Não conseguiríamos sair de nossa própria cabeça? Mas o que é o sentido genuíno, senão aquele que se contrapõe a nós, que resiste a nós e nos repele? Se é que a vida tem um sentido, por certo não há de ser algo que projetamos nela a esmo. O que teria a vida a dizer a esse respeito? (p. 92)
9.
A gente finge que não vê, mas tem um moedor de carne em cada esquina.
Todo significado é um ato humano, e os sentidos ditos “inerentes” são os atos que captam uma verdade relativa ao que está em questão. O mundo não se divide entre os que creem que os sentidos são “inerentes” às coisas, como o fato de que meu apêndice se encontra em meu abdômen, e os que pensam que ter um apêndice faz parte da “construção social” do corpo humano. “Construções” desse estilo são como uma conversa de mão única com o mundo, na qual, um pouco como os americanos no Iraque, nós dizemos a ele o que ele é ou deveria ser. O sentido é um produto de nossas transações com o real. Textos e leitores dependem mutuamente uns dos outros.
Voltemos ao nosso esquema de pergunta e resposta: podemos colocar questões para o mundo, mas elas serão nossas, e não dele. E, se as respostas que o mundo nos oferece são instrutivas, é precisamente porque a realidade é mais do que nossas questões antecipam. Ela excede nossas interpretações, e vez por outra as recebe com um gesto rude ou mesmo violento. O sentido é algo que as pessoas fabricam; mas o fazem em diálogo com um mundo determinado cujas leis elas não inventam, e, para que seus sentidos tenham algum valor, elas devem respeitar a textura desse mundo. Reconhecer que é assim é cultivar certa humildade, que não coaduna com o axioma construtivista de que o sentido nos pertence exclusivamente. Essa noção superficialmente radical conspira, na verdade, com a ideologia ocidental de que o que importa são os fins que impomos ao mundo e que servem a nossos fins. (p. 96 e 97)
10.
O sentido da vida está em ultrapassar o não-simbólico só para ver o que tem depois da cortina. É desanimar-se mil vezes para reanimar-se outras mil mais. É não desistir, é não arredar, é permanecer firme com o lado que condiz com a ética, com a diversidade, com a igualdade e com a democracia.
O que chamamos aqui de amor é o jeito que temos de conciliar nossa busca por realização individual com o fato de sermos animais sociais. Pois amar significa criarmos para outra pessoa o espaço em que ela possa florescer, o que ela, por seu turno, também faz nós. A realização de cada um se torna a base para a realização alheia. Efetivar assim nossa natureza é mostrar o que temos de melhor. Pois, ao menos em parte, realizar-se a si mesmo de modo que outros também possam fazê-lo exclui necessariamente o assassinato, a exploração, a tortura, o egoísmo e outros. Quando prejudicamos os outros, estamos a nos prejudicar a nós mesmos a longo prazo, pois nossa realização pessoal depende da colaboração de outros. E, como só há verdadeira reciprocidade entre iguais, a opressão e a desigualdade também são, a longo prazo, danosas para quem as inflige. O que não combina com o modelo liberal de sociedade, para o qual é suficiente que meu florescimento individual seja protegido da interferência alheia. O outro não é o que faz que eu seja o que sou, é uma ameaça ao que eu sou. (p. 128)
11.
Às vezes a gente não consegue ver, mas tem sempre alguém por perto que acredita no amor e na liberdade — e que está só esperando pra dizer “você não está sozinho”.
Tomemos por um instante, como imagem de uma vida boa, um conjunto de jazz. Um conjunto de jazz em improvisação é obviamente diferente de uma orquestra sinfônica, pois, em ampla medida, cada um dos músicos que fazem parte dele é livre para se exprimir como bem entender, sem que com isso deixe de ter uma receptividade à sua expressão por parte dos outros músicos. O complexo equilíbrio que se dá entre eles não vem de executarem um arranjo coletivo, mas da expressão livre de cada um, que serve como base para a expressão livre dos outros. À medida que cada músico se torna mais eloquente, os outros se inspiram nele e são levados a alturas ainda maiores. Não há conflito entre a liberdade de cada um e o interesse do todo. Mas o resultado é a imagem invertida do totalitarismo. Pois, embora cada músico contribua, como dissemos, para o interesse do todo, não o faz por uma renúncia, mas, ao contrário, pela expressão mais livre possível. A realização de cada um vem da perda do eu na música como um todo. Há, de fato, uma realização, mas ela não depende de um sucesso individual. Ao contrário, o resultado, ou seja, a peça musical, atua como meio de relação entre os instrumentistas. Produz-se um prazer, e, dado que existe uma plenitude ou realização, também felicidade, no sentido de um florescimento, que, por ser recíproco, nos permite falar, que seja remotamente, e por analogia, numa espécie de amor. (p. 130)
12.
P.S.: Claro que não há resposta para o sentido da vida no livro O sentido da vida, mas recomendo fortemente a leitura. Os trechos que selecionei para a Cisma são apenas algumas das reflexões proporcionadas pelo ensaio de Terry Eagleton.
13.
P.S.²: No próximo domingo, vote a favor da democracia. Vote no Lula.