A palavra Réveillon é um substantivo masculino francês derivado de verbo réveiller, que significa despertar — uma escolha nada ocasional, já que estamos acostumados a pensar que não há momento melhor para repensar caminhos do que a virada do ano. A quantificação dos dias, o clima de recomeço, a ideia de que ganhamos uma nova chance de começar de novo (como uma frase cheia de pleonasmos) é capaz de mexer até com as cabeças mais terapeutizadas. É natural, inclusive, acreditarmos que somos capazes de mudarmos de rota para continuarmos (per)seguindo o que quer que seja.
No entanto, o ideário de novidade, de renovação, de recomeço e de transformação ao qual somos levados a acreditar na transição de um ano para outro é apenas mais um dos muitos artifícios simbólicos que engolimos com farinha e muita coca-cola. Assim como os dias da semana e o relógio, o calendário é apenas mais uma forma simbólica de controle de mão dupla: a ilusão de controlar o tempo também faz com que o tempo exerça controle sobre nós. Um controle, aliás, dificílimo de escapar, já que numa vida em sociedade temos prazos, dias da semana e horários marcados para tudo.
Por estarmos acostumados com a medição do tempo, parece uma ideia estapafúrdia ignorar sua passagem, mas tenho pensado muito nela desde que descobri que algumas línguas indígenas não possuem palavras para descrever a passagem do tempo.
Tempo-rendimento
O tempo sempre foi um tempo precioso para mim. Desde muito jovem, decidi ser uma freelancer porque não queria nenhuma empresa sugando meu tempo. Por isso mesmo, e pelas minhas escolhas profissionais, a ideia de férias, hobbies e distrações nunca fizeram muito sentido pra mim. Meus critérios para aceitar ou não algum trabalho sempre foram (nessa ordem):
- Alinhamento ideológico;
- Vontade de fazer;
- Contas a pagar;
- Tempo disponível.
Sem dúvida, colocar ideologia e vontade antes das contas e do tempo me causou alguns problemas. Mas, mesmo cuidando para não entrar na lógica de tempo é dinheiro, eu sempre estou atrasada — e não, não é a apenas sensação de estar atrasada. De fato, estou sempre atrasada, como se eu percebesse a passagem do tempo de uma forma diferente. Em psicologia, essa percepção é chamada de tempo relativo.
É possível que você já tenha se sentido deslocado no tempo. Essa estranha oposição entre tempo cronológico (o lugar em que estamos na nossa “linha” do tempo) e o tempo relativo (o momento psicológico que experimentamos) é uma das sensações mais confusas que vivenciamos, com direito a picos de ansiedade e nostalgia, ou simplesmente de deslocamento e frustração. Não se trata apenas do que poderia ter sido e não foi, mas da oposição entre a fluidez do tempo e a ilusão de que podemos controlá-lo.
Tempo-narrativa
Quando construímos uma narrativa, pensamos no tempo com uma linha. Mesmo que haja saltos temporais, idas e vindas, o tempo continua sendo um horizonte de novidades. Repetições e retomadas ocorrem apenas em prol do enredo, e sempre com boas justificativas.
É como uma linha também que pensamos no nosso tempo vivido. Siga em frente, deixando para trás aquilo que foi e não volta mais; indo de encontro ao desconhecido — um bando de clichês que repetimos como mantras para justificar nossas escolhas e casos. Mas, e se estivermos enganados? E nosso tempo, ao invés de uma linha, for uma espiral?
Tempo-ancestral
A ideia do tempo espiralar é parte da cosmovisão indígena. Ao invés de uma linha, o tempo é visto como uma espiral que conecta, no contínuo do agora, passado, presente e o possível futuro. Assim, as ações de hoje são carregadas tanto do peso das gerações que vieram antes quanto da responsabilidade pelas gerações que virão depois. “O tempo indígena e o tempo da memória e do cuidado”, diz Anápuàka M. Tupinambá Hãhãhãe. É respeitar o tempo das coisas, usando a comunicação tanto para a transmissão quanto para a escuta de saberes.
Se olharmos o tempo como uma espiral, não há necessariamente velho nem novo: tudo é coexistência. Quem fomos e quem seremos conflui no agora — mas para um agora de presença, não de imediatismo. Um agora no qual estamos sempre construindo e em construção. Nesse agora não precisamos nos preocupar com novidades, vitórias ou frustrações, porque esse agora é parte do que somos — isso basta.
Assim, nosso ano novo não precisa ser cheio de novidades nem de arrependimentos. Quer você esteja se cobrando para planejar o projeto 2025, frustrado por não ter completado o projeto 2024, ou cheio de ideias só porque é a primeira semana do ano, faça uma pausa e crie uma narrativa espiralar para si mesmo — afinal, todo tempo é tempo enquanto os que você foi e os que será coexistirem dentro de você.
P.S.: como em outros tempos, a primeira versão dessa Cisma foi escrita à mão.