Deus, pátria, família e exército. Não é de hoje que essas palavras são utilizadas por políticos (na política), irrogando em sua retórica dos discursos a “mais pura verdade”, entrelaçadas a um determinado assunto.
Seria estranho se fosse diferente com a Educação Domiciliar — ou, como é mais conhecida, o Homeschooling. Embora não seja um assunto novo, a partir de 2018 seu debate vem ganhando espaço dentro do poder público, em especial, dentro das casas de leis municipais e estaduais.
Apenas para contextualizar, em setembro de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou o Recurso Extraordinário 888815 (de 2015) que trata do assunto, por falta de uma lei de regulamentação. Na decisão, não foi apontada a inconstitucionalidade da prática de ensino domiciliar pelos ministros Alexandre de Moraes (redator do acordão do julgamento), Luís Roberto Barroso (relator) e Edson Fachin. Os demais juristas defendem o contrário, que a prática de ensino domiciliar é crime, previsto no artigo 246 do Código Penal.
A decisão foi em regime de repercussão geral, desta forma, o conteúdo da decisão é um estalão para casos de igual teor. Nota-se na decisão, que não foi autorizada a adoção de medidas para a implementação da educação domiciliar. Porém, foi o suficiente para que os defensores do ensino domiciliar começassem a infestar as redes sociais de vereadores e deputados para que o assunto fosse colocado em pauta.
No dia 29/06 deste ano, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Assembleia Legislativa do Paraná (Alep), aprovou um parecer favorável para instituir as diretrizes do ensino domiciliar no âmbito da educação básica no estado do Paraná. Chama a atenção as justificativas utilizadas no projeto. Quando você tiver um tempo, clique no link (mais abaixo) e leia as páginas de 4 a 6 do PDF, e perceba o nível da compreensão de mundo dos deputados que votaram a favor.
O documento destaca — informações claras como as águas de um pantano — uma pesquisa cujas metodologia e interpretação de dados possuem um nível de excelência de causar inveja às indústrias de papel higiênico; uma contextualização histórica que remonta à República de Platão até os dias atuais, com dados apresentados da mesma forma que uma camiseta saída das antigas máquinas de lavar roupas de madeira; e, de modo algum poderia faltar, a “fundamentação econômica” — metáfora que fica por sua conta.
Trata-se do Projeto de Lei 179/2021. Com parecer favorável do relator, o deputado Delegado Francischini (PSL), a proposição agora tramitará em outras comissões antes de ser apreciada pelos deputados em plenário. O único voto contrário à pauta foi do deputado Tadeu Veneri (PT).
Entretanto, no dia 21/06, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Paraná já havia julgado inconstitucional um PL similar, a Lei Municipal de Cascavel 7160/2020 que visava autorizar e regulamentar a educação domiciliar no município.
Com a chegada da Covid-19, a necessidade de modelos educacionais de ensino remoto trouxe mais uma vez à tona a disparidade da qualidade de ensino no Brasil. Além da constante romantização da educação, propagada nas mídias sociais, houve o que o mercado chama de aumento de demanda e, por conseguinte, a urgente necessidade da implementação do ensino domiciliar.
Educação domiciliar e politicagens
A educação domiciliar é uma antiga pauta neoliberalista, originada no embrião da doutrina socioeconômica: o Estado Mínimo. No âmago da visão neoliberal, é evidente o favorecimento de apenas um grupo populacional, a saber, aquele que domina o sistema econômico e político. É este, por não carecer de recursos, quem consegue deter modelos de negócio próprios para a implantação da educação domiciliar.
Contudo, esta é uma pauta também de interesse do atual presidente da república. A proposta é uma das que figuravam entre as prioridades nos 100 primeiros dias do governo. Como dizem, “se você for contrário às propostas de Bolsonaro a probabilidade de você estar certo, é de aproximadamente 99,9%.”.
Mas o interesse do governo em implementar a educação domiciliar, aparentemente justificado pelo neoliberalismo de Paulo Guedes, é apenas uma fatia desse bolo. Isto porque, apoiado em sua base eleitoral — em sua maioria, classe média alta de extrema-direita, evangélicos e militares —, Bolsonaro manipula seus eleitores a seu bel prazer. Explicamos:
Dentre as maiores motivações para que seja implementada a educação domiciliar, estão argumentos descabidos e falaciosos, que em nada contribuem para as importantes discussões no âmbito da educação pública.
Entre eles estão as “pautas de costumes” como, por exemplo, a proteção contra desrespeito a valores morais (leia-se Bíblia), culturais (leia-se norte-americanização à brasileira), religiosos (leia-se evangélicos) ou ideológicos (leia-se tudo que seja diferente do pensamento bolsonarista).
Estas são somadas aos “perigos do ambiente escolar”, segundo o bolsonarismo: o aliciamento para o consumo de drogas, que foi amplamente difundido como uma verdade absoluta por Abraham Weintraub, ex-ministro da educação; os abusos sexuais disseminados na verborragia de Damares Alves e também pelo presidente ainda durante sua campanha; e o bullying.
A agenda de direitos é distorcida de forma constante e vendida como política pública. Sim, vendida. Cada pasta ministerial possui verbas, pagas com dinheiro público, ou seja, nosso dinheiro. Do montante destinado à educação pública previsto para este ano, o governo de Jair Bolsonaro, já bloqueou R$ 2,7 bilhões, agravando ainda mais a discrepância causada pela pandemia de Covid-19.
Dos 47 milhões de estudantes da educação básica, estima-se que 4,7 milhões, não possuem acesso à internet. Por outro lado, 15 mil alunos recebem educação em casa — um número irrisório, para que a educação domiciliar seja tratada como prioridade.
Mas existe muito interesse por esta pauta. O PL 3262/2019, de autoria das deputadas bolsonaristas Bia Kicis, Chris Tonietto e Caroline de Toni (todas do PSL), teve a aprovação na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. A proposta é descriminalizar a educação domiciliar.
Trata-se de um primeiro passo para a regulamentação de um outro PL, sob o número de 3179/2012 de Lincoln Portela (PL), que é pastor da Igreja Batista Getsêmani. Vale lembrar que tanto a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves (pastora) e o ministro da Educação, Milton Ribeiro (pastor da Igreja Presbiteriana), são defensores da educação domiciliar. Mas se engana quem acha que os interesses são apenas religiosos. Existe ainda um interesse comercial por trás da iniciativa.
Quem ganha com o Homeschooling
Ultimamente, um pouco calado nas redes sociais (em especial o Twitter), por ver seu ideal neoliberal e alinhamento com Bolsonaro ficarem indefensáveis, somado a ausência de um palco para divulgar as suas ideias de “geração de valor”, Flávio Augusto (ele mesmo, o fundador da escola de inglês Wise Up e também proprietário do Orlando City Soccer Club), é um dos mais ferrenhos defensores da educação domiciliar e do Estado Mínimo.
Seu projeto de divulgação do assunto começou a ser espalhado no Brasil através de um programa exclusivo dentro do podcast Jovem Nerd, dedicado à época a assuntos relacionados ao empreendedorismo. Flávio utilizou a popularidade do programa (pioneiro no Brasil, o NerdCast, é possivelmente até hoje, o podcast com o maior número de ouvintes no país) para além de conseguir seguidores, influenciar toda uma gama de espectadores que não possuem a mesma “compreensão mercadológica” que a sua, incentivando o público a aderir aos ideais neoliberais e, é claro, ao homeschooling.
O empresário já disse mais de uma vez não ter interesses políticos, entretanto, mais de uma vez seu nome foi pleiteado entre os participantes do programa como uma possível candidatura presidencial. Para que fique claro o seu “afastamento político”, na atualidade, Flávio possui uma parceria com Carlos Wizard, um dos investigados pela CPI da Covid, por supostamente fazer parte do gabinete paralelo do Ministério da Saúde.
Com um modelo de negócio pronto, falta apenas o respaldo judicial. Pois, na visão “empreendedora”, como é sabido, a fórmula é utilizar os artifícios e amparo da lei para transformar a educação domiciliar em aulas como as de cursinhos de inglês já ofertadas pela dupla.
Batendo continência ao Homeschooling
E o que isso tem haver com os militares? Tudo! Atualmente eles ocupam mais de 6 mil cargos no governo federal além do vice presidente da república, dos ministros da Casa Civil, da Segurança Institucional, da Secretaria do Governo, da Secretaria Geral da Presidência da República, da Ciência, da Tecnologia e Inovações, da Defesa, da Infraestrutura, de Minas e Energia e da Transparência, (e da Saúde, até poucos dias).
Por isso, é preciso que fique claro, já estamos em um governo militar, e um governo militar quer escolas militares. Reforma? Só para civis, pensões vitalícias, entre outros absurdos.
A regulamentação do homeschooling no Brasil vem de encontro também com os interesses militares, retroalimentando a ideia de que as chamadas no Paraná de escolas cívico-militares são importantes. Estima-se que o custo de investimento por alunos de escolas militares é 3 vezes maior que escolas regulares.
Para finalizar, gostaríamos de indicar este artigo, que trata de elucidar o pensamento neoliberal a respeito da educação domiciliar. Leia e perceba como os interesses bolsonaristas, bem como os interesses dos mais diversos setores fora do governo atual, são por si só, conflitantes.
Ao manipular sua base eleitoral, convencendo-a de que a educação domiciliar é uma pauta prioritária, o governo toca seu projeto com o corte de verbas para as escolas públicas, alimenta a ideia de que existe uma doutrinação ideológica dentro desses ambientes e pratica o desmonte da educação pública. Bolsonaro e seus aliados já transformaram o Brasil em uma caquistocracia, com o seu Estado Militar Teocrático.
Antes do fechamento: Quando estamos finalizando este texto, recebemos a notícia de que o atual presidente entrou com uma ação no STF para suspender a lei 14.172, que já havia sido vetada pelo mesmo e os vetos derrubados no Congresso. O projeto de lei prevê a garantia de acesso à internet, com fins educacionais em escolas públicas. Mais uma vez veremos as desculpas esdrúxulas de Bolsonaro e o do Pastor Milton Ribeiro.