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A escrita que nos descansa

Existem dois tipos de escrita: aquela que nos exaure e aquela que nos descansa. Não se trata apenas da oposição entre foco e cansaço, complexidade e expressão. Acredito até que, dada a variedade de fatores durante o processo de escrita, a tarefa de mapear as sessões que cansam e as sessões que energizam talvez não siga lógica, sendo muito mais sentida no após do que passível de ser identificada de antemão.

Energizar não é sinônimo de não cansar. Escrever por horas seguidas sempre é cansativo, mas algumas vezes a energia investida volta pra dentro, como se corpo e mente tivessem repousado. Basta levantar da cadeira: o olhar se amplia, a sensação de completude afirma o equilíbrio. Nem força, nem desgaste, nem pressa: apenas um passo de cada vez, como quem conhece os próprios caminhos enquanto os constroi.

Esse estado de descanso vai muito além da satisfação intelectual: está no ato em si, no campo do processo. Não é apenas como organizar informações ou finalizar tarefas — está mais para uma doação, a recompensa após uma entrega desinteressada. Ajuda, é claro, dominar técnicas, ter fontes organizadas, respeitar o próprio tempo e saber onde se almeja chegar com a escrita. Ajuda, mas não garante o descanso.

É, também, mais do que estar focado no processo. Muitas vezes, quando entramos em fluxo, não queremos sair e perdemos a noção do tempo. O fluxo pelo fluxo pode ser muito traiçoeiro. Ajuda fazer um contrato consigo mesmo para aproveitar o melhor do estado de foco sem se perder no tempo: fazer pausas, respirar, ir ao banheiro.

Pode soar como uma meditação, mas também não é. Na meditação deixamos os pensamentos seguir, enquanto na escrita eles nos agarram. Servimos chá e insistimos para que se demorem um pouco mais. Para que não sejam poucos nem muitos, apenas o suficiente, porque fica difícil escrever quando as vozes são várias. Ajuda ter sempre um caderno por perto, para evitar ligações cruzadas.

Não é apenas uma questão de hábito — mesmo que hábito seja também ajuda. Talvez seja apenas uma questão de espaço: o espaço que cada um tem por dentro pra fazer escrita. Por isso a escrita que descansa é tão particular e mística. Cada um tem seu próprio espaço pra explorar, com seus limites, desafios e levezas. Quando a escrita nos escolhe como força motriz, não importa o quanto a gente se abata: ela sempre volta — e volta ainda mais poderosa.

A escrita que nos descansa não é só a escrita que vem fácil ou a escrita que nos deixa alerta — a escrita que nos descansa é também aquela que nos desperta.


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