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a newsletter de cultura e tecnologia da Edições Tempora

teal and orange abstract painting

A escritora na pós-modernidade técnica em sua era de irreprodutibilidade artística

1.

Oi, eu sou a Mylle e estou sendo obrigada a me apresentar nessa rede social porque só assim meia dúzia de pessoas verão que sou real. Escolhi essa foto sorrindo porque quero me mostrar feliz sendo quem sou, não porque eu não seja feliz, mas o mundo só vai entender que sou feliz se eu aparecer sorrindo (ainda mais porque sou mulher). Meio que preciso explicar o que eu faço para os outros, mesmo que eu mesma não tenha interesse algum em me classificar ou me colocar em caixas — porque é só assim que conseguiremos dar uma utilidade a essa nossa interação, via de regra, inútil.

2.

Oi, eu sou a Mylle, e sou editora. A coisa de editora começou assim, com um grupo de pessoas dizendo “já que você sabe fazer livros, você poderia fazer o nosso” e no fim, ficou. Foi divertido no começo e deu alguma (pouca) grana, algum (pífio) status. Parecia uma evolução do “faço meus livros” para “faço os livros dos outros”. Até sei ler os textos e dar sugestões, como se eu fosse especialista nessa porra, já pensou? Teve gente que começou a me olhar diferente, me atribuir certa utilidade, vindo cheio de sonhos pra falar “você faz meu livro?” e eu ali na corda bamba. Meu plano de vida é fazer muitos livros, mas (desculpe) o seu não está incluso. 

3.

Oi, eu sou a Mylle, e sou jornalista. Ao menos é o que diz o diploma, devidamente guardado na caixa de guardados, no fundo da pilha de tranqueiras, homologado pela poeira das décadas. Das cinco vezes que usei o troço pra qualquer coisa, a versão digitalizada bastou, mas é bonito se dizer jornalista. “Você vem da comunicação, né?” e eu respondo “sim, sim” sem nem corar com a mentira. Se eu soubesse que fazer o mural e depois o jornal da escola ia me colocar essa pecha pelo resto da vida, talvez eu tivesse escolhido outro passatempo na adolescência. Pelo menos paguei metade do meu curso de inglês fazendo house organ

4.

Oi, eu sou a Mylle, e sou artesã/muambeira. Pra mim, ser de humanas e vender miçanga na praia é um negócio muito sério. É tanta feira que já perdi a conta, fazendo boton, caneca, mouse pad (em 2013 ainda vendia, tá?), caderno, camiseta, origami, crochê, bijoux da China (saudades do dólar a R$2), o pacote completo. Até curso no Sebrae já fiz pra vender melhor minha arte — e deve ter funcionado porque, nos tempos áureos, chegaram a me perguntar se eu colocava cocaína nos botons, de tanto que eu vendia.

5.

Oi, eu sou a Mylle, e sou produtora cultural. Isso sim que é título, até compensa o sorriso pra foto, hein! Agora a coisa tá acontecendo, uma pessoa que consegue grana pra produzir cultura nesse país tão sucateado, que glória! Dá pra dizer como as pessoas são impactadas, escrever relatórios, planejar inúmeros projetos, um atrás do outro, porque a roda da fortuna não pode parar! Ter o nome aprovado nas listas é coisa chique, finíssima: um atestado de que faço parte da nata da produção cultural de uma cidade do sul do mundo.

6.

Oi, eu sou a Mylle, e sou ministrante de oficinas de escrita criativa. Eu posso falar umas besteiras, olhar para o seu texto e dizer o que você deve melhorar — não é feitiçaria, é tecnologia! E você vai evoluir, oh, você vai brilhar através da fina flor dos meus comentários sobre o que quer que você escreva. Vai perder essa oportunidade? Clique no link da bio e se inscreva agora mesmo em uma das mil oficinas que estou ofertando — mas corra, que é por tempo limitado!

7.

Oi, eu sou a Mylle, e nunca quis ser nada disso. Não que todas essas personas tenham sido ruins para mim — pelo contrário, elas me ajudaram a chegar até aqui. Mas não, eu não as queria de fato. É difícil saber que tenho um potencial, mas nunca ter a chance de dedicar tudo que posso a ele. É como se eu tivesse uma ideia latente, mas não o tempo disponível para encontrá-la dentro de mim. A sensação é que estou morrendo na praia (e, por favor, isso não é vitimismo, é apenas uma constatação). 

8.

Oi, eu sou a Mylle, e tem um monte de histórias me navegando por dentro. Tudo o que eu queria era poder escrevê-las sem precisar me preocupar com mais nada, mas, ao invés disso, estou aqui, me apresentando para vocês nessa rede social. A questão não é nem a rede social, mas o fato de escolher ser escritora e precisar ficar me vendendo o tempo inteiro. Se ao menos as relações fossem mais orgânicas ao invés de mediadas pela competição gerada pelos algoritmos, pelas formas de financiamento do trabalho e pelas caixinhas em que precisei me colocar pra chegar até aqui, escrever seria mais livre. Escrever seria só escrever.

9.

Oi, eu sou a Mylle, e sou escritora. Às vezes poeta, às vezes roteirista de HQs, mas, na verdade, definir minha relação com a escrita não me interessa. Desde que aprendi a escrever eu só quero escrever, mas descobri cedo que precisava aprender quilos de outras coisas para sobreviver escrevendo. Como quero que cada vez mais pessoas leiam o que escrevo, me submeto a jogar o jogo, me expondo aqui e acolá, e meio que arranjo formas de socializar, mesmo que minha vontade seja ficar no meu canto (adivinhem?) escrevendo. Apesar de ser cansativo, desafiador e sabendo que ninguém vai se importar, vivo em função dos momentos em que termino de materializar em escrita toda sorte de percepções e ideias espalhadas aqui por dentro.


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