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Mujica Foto: Ricardo Stuckert

A esquerda não será mais a mesma — “Y el guerrero tiene derecho a su descanso”

Os dias parecem mais longos quando figuras como Pepe Mujica começam a se despedir do palco político. Não foi preciso que ele anunciasse formalmente sua decisão de recolher-se para que sentíssemos o peso dessa ausência.

Mujica é uma lenda viva, um símbolo de coerência entre palavras e ações, algo raro em tempos de promessas vazias e discursos inflamados sem substância. Sua voz, grave e pausada, carregava verdades que atravessaram fronteiras e ideologias.

Numa fazenda modesta, rodeado por suas plantas e pelo silêncio cúmplice dos campos uruguaios, Pepe tornou-se uma das vozes mais marcantes da esquerda global. Nunca precisou de palácios suntuosos nem de carros blindados para provar sua relevância.

Governou o Uruguai com a mesma simplicidade com que cuidava de seu Fusca. “No soy pobre, soy sobrio, liviano de equipaje, vivir con lo justo para que las cosas no me roben la libertad”.

Seus gestos falaram tanto quanto suas políticas: a doação de quase todo o seu salário presidencial para programas sociais, a legalização do casamento igualitário, a regulamentação da cannabis e as iniciativas pioneiras em direitos humanos.

Mujica sempre foi maior que seu próprio país, e ainda assim nunca quis sê-lo.

A ausência de Pepe não será apenas sentida no Uruguai, mas em toda uma América Latina marcada por desigualdades crônicas e esperanças teimosas. Mujica foi a voz que lembrou, nas tribunas internacionais e nos encontros mais reservados, que a política não é para enriquecer, mas para servir.

Seu legado transcende a esquerda: é um modelo de ética e simplicidade, um convite a repensar o papel do poder e a natureza do progresso. “El poder no cambia a las personas, sólo revela quiénes verdaderamente son”.

O mundo parece um pouco mais áspero sem a serenidade de suas reflexões, sem sua habilidade quase poética de dizer tanto em tão poucas palavras. “Y el guerrero tiene derecho a su descanso”, ele disse, em um misto de despedida e de ensinamento final. Sim, Mujica merece o descanso. Mas quem terá descanso sem ele?

A esquerda, que tantas vezes se perde em disputas internas e em egos inflamados, não será mais a mesma. Perde não apenas um líder, mas um Sul. Mujica mostrou que é possível governar sem arrogância, dialogar sem ceder nos princípios e construir políticas públicas que transformem vidas sem discursos vazios. Ele é, e continuará sendo, um lembrete vivo de que a política pode ser mais do que um jogo de interesses.

Pepe Mujica nos deixará, sem nunca partir completamente. Será a memória constante de que a simplicidade é revolucionária e de que é possível lutar por justiça sem perder a humanidade. Que a esquerda não seja mais a mesma, mas que aprenda com ele a ser melhor. E que nós, todos nós, possamos carregar um pouco de seu espírito em nossas próprias trincheiras diárias, por menores que sejam.


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