Aprender um estado mental para escrita, um lugar que, quando o acessamos, nos coloca entre os grandes, mas que também deles nos diferencia através da nossa voz, da nossa intenção e da nossa verdade. Esse ponto de criação em equilíbrio, buscado por todos os artistas, mas que poucos, de fato, encontram. “Uma livraria é uma loja cheia de vozes”, nos lembra Julia Bell no seu curso de introdução à escrita criativa de não ficção. Todas essas vozes enfileiradas umas ao lado das outras são a materialização dessa busca, até o ponto onde puderam chegar.
Se, como comenta John Berger no livro Modos de ver, “nós nunca olhamos apenas para uma coisa: nós sempre olhamos para a relação entre coisas e nós mesmos”, não podemos olhar para o estado de escrita por si só: precisamos pensar na relação que temos com o ato de escrever. Assim, a escrita deixa de ser um estado para se tornar uma filosofia — ou seja, é a forma de pensar sobre a escrita que nos leva ao estado, e não o estado (ou a inspiração) que nos leva a escrever.
Escrever é pessoal, profundo e intenso, mas é também, via de regra, um ato de comunicação com o outro — e, por isso, demanda pesquisa, precisão e clareza. “Se você quer se desenvolver como escritor, você também terá que se desenvolver como pessoa”, defende Alan Moore neste vídeo produzido pela BBC. Mas a ideia de autoconhecimento do roteirista das HQs Watchmen e V de Vingança é um pouco diferente: está ligada à investigação moral e política, com o intuito de observar os outros habitantes do mundo com mais compreensão e menos julgamentos.
O conselho de buscar um posicionamento moral e político para encontrar a sua voz na escrita é muito útil, em especial quando vivemos tempos tão polifônicos. Escrever é sim um ato político, como qualquer forma de arte, porque nossas mensagens estão permeadas pelo que intencionamos no momento da escrita. A intenção, nos conta Rick Rubin no livro O ato criativo: uma forma de ser, “é uma verdade que vive dentro de você”. Então, como vamos encontrar a verdade de cada obra sem nos investigarmos a fundo? Isso faz da filosofia da escrita um grande ato de investigação.
A intenção, para Rubin, é mais que um propósito consciente. Seria a congruência desse propósito — mas isso exigiria um alinhamento de todos os aspectos do eu. “Nossos pensamentos, sentimentos, processos e crenças inconscientes têm uma energia que fica oculta na obra. Essa força invisível e imensurável dá a cada peça seu magnetismo”. Se antes de cada ação há um pensamento, impossível não nos perguntarmos, neste ponto, no que acreditamos e no que duvidamos antes de começarmos a escrever.
A questão é que não basta racionalizar tudo — afinal, como diz Mary Karr no livro The art of Memoir, “atenção sem sentimento é só um relatório”. A filosofia da escrita envolve então um equilíbrio entre estar atento tanto para o mundo ao nosso redor quanto para o nosso mundo interior, e se permitir os lampejos que brotam dos espaços vazios das nossas mentes. Shunmyo Masuno, seguindo a filosofia zen, define os espaços vazios como “intervalos que surgem entre um pensamento e outro”. Assim, lembramos que nem toda ação é fruto de um pensamento consciente e, por isso mesmo, as percepções mais valiosas são aquelas que surgem quando não esperamos por elas.
Rubin propõe que pratiquemos a percepção desapegada para acessarmos a Fonte — que é, basicamente, tudo o que está ao nosso redor. Nossa consciência seria o filtro e nós, o recipiente que armazena as informações coletadas. Como somos todos diferentes e nossos espaços de armazenamento são limitados, recebemos e filtramos as informações de forma diferente e limitada. No entanto, como artistas, estamos sempre em busca daquele olhar infantil, aquele “estado mais inocente de encantamento e apreciação, não atrelado à utilidade nem à sobrevivência”.
Olhar com desapego é também entender no que acreditamos, quais são nossos valores e o que esperamos de nós mesmos e do mundo. Quanto mais precisas forem as nossas respostas, mais livres estaremos para experimentar o ato da escrita sem julgamentos e crenças limitadoras. “Quando você está escrevendo sobre o mundo, você precisa de uma forma de ver”, lembra Moore. Se estamos em busca da nossa voz única, como aponta Bell, precisamos perceber o lugar em que estamos sentados em relação ao mundo — não o lugar de fala, mas sim esse lugar único e limitado de observador do mundo.
Abraçar e assumir esse lugar único e limitado talvez seja a potência da filosofia da escrita, porque apenas ao reconhecermos o lugar onde estamos é que somos capazes de transmitir nossas mensagens sem cair na armadilha da comparação. Quando desejamos o lugar do outro, acabamos invalidando nossas escolhas, cegando nossa percepção e até mesmo silenciando nossa escrita. Uma vontade de dizer sem o ato da escrita não é nada, não transforma as coisas. No entanto, a materialização das ideias em texto podem modificar a consciência e a realidade de quem as ler. Por isso “seu desejo de criar tem de ser maior que o medo”, como nos lembra Rubin.
Moore nos conta que desenvolver essa forma única de ver o mundo pode se transformar numa energia capaz de abastecer toda uma carreira de escrita. Isso porque quando estamos presos na comparação, estamos sozinhos, mas quando abrimos nossa percepção, estamos em colaboração — basta olhar para o mundo e concluir que “desempacotamos nossa imaginação e passamos a conviver com partes dessa imaginação que nós fomos capazes de resgatar de dentro das nossas cabeças”. Muitas das ideias, conceitos, personagens e reflexões que hoje habitam as nossas mentes chegaram até nós através da escrita. O ato da escrita é, então, uma forma de fazer parte dessa grande colaboração criativa, através da qual reimaginamos, todos os dias, a nossa realidade.