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A Literatura dá conta

por Patricia Dias

Aposto que você, leitor inveterado, já ouviu muitas vezes essa frase: “Não leio ficção, prefiro ler conteúdo que agregue ao meu trabalho”. Uma verdadeira blasfêmia, eu sei, porém, dita com tamanha convicção que fica difícil argumentar ou tentar convencer o sujeito. Até podemos estimular, dar aquele empurrão, mas o outro precisa estar aberto ao universo ficcional. É preciso despertar o desejo pela leitura literária, e quanto antes, melhor. Os livros — técnicos, de autoajuda, desenvolvimento pessoal — que me desculpem, mas nenhum deles substitui a grandeza da experiência com a Literatura.

Chego a sentir pena dessas pessoas que passarão a vida sem encontrar conforto em um livro, ou que nunca saberão como é chorar com uma leitura. Gente que jamais experimentará o prazer — quase sublime — de encontrar um livro “favorito da vida”.

Na prateleira dos ditos “livros inúteis” estão aqueles que nos formam como seres humanos, e não como mão de obra barata. O mestre Cândido já anunciava “Ler nos humaniza”. E também nos torna mais críticos, e potencialmente, perigosos. Quantos livros já foram queimados em nome de uma pretensa ordem? Melhor nem calcular. Fahrenheit 451, romance de Ray Bradbury, é assustadoramente atual. Nós leitores, sempre fomos um grande estorvo.

Essa defesa da Literatura não significa que devemos rechaçar a não-ficção, mas sim buscar um equilíbrio entre as leituras da vida prática e as leituras de fruição. Sei que parece uma ideia estranha para muitos, mas todo o “conteúdo de desenvolvimento pessoal” de vários best-sellers pode ser encontrado nos textos literários. Seja nos grandes clássicos universais, ou nos contemporâneos, todos trazem contribuições preciosas para pensarmos o ser e o estar no mundo de hoje. Claro que não estará transcrito de forma óbvia e didática — mas na riqueza da prosa e poesia — e será preciso escavar o texto para acessar seus diferentes sentidos. De quebra, ainda desenvolvemos a habilidade de identificar metáforas e ler nas entrelinhas.  

Outro aspecto importante em relação a Literatura é a possibilidade de habitar o campo da incerteza. Diferente das redes sociais, onde as pessoas sentem uma necessidade incontrolável de opinar sobre tudo (com pouca ou nenhuma propriedade!), a leitura nos pede calma e reflexão. Nos convoca a respirar, sentir e questionar. Sutilmente vai derrubando nossas certezas, uma a uma, nos enredando em narrativas com personagens dúbios, narradores que sabem coisas que não sabemos, finais inesperados e inconclusos…  Vamos aprendendo a abrir mão de determinadas crenças e passamos a duvidar de tudo. Aprendemos que nem sempre é preciso tomar partido, que podemos manter um distanciamento, olhar de fora e ver as coisas em seus vários ângulos.

A literatura nos oferece o encontro com o diferente em um terreno seguro para experimentação. O livro pode ser um “treino de vida” antes da estreia. Certos personagens nos oferecem a chance de nos aproximarmos de um Outro estranho a nós, e também nos fazem olhar para o estranho que trazemos em nós mesmos.    

Ao nos sentarmos em uma poltrona, com um livro e uma xícara de chá, experimentamos algo cada vez mais raro — um momento de ócio e contemplação — fundamentais para a exploração dos sentidos.  O olhar atento de autores, especialmente os poetas, nos desperta para a sensibilidade e encantamento, características tão próprias da infância que vamos perdendo com o passar do tempo.

Para finalizar, recorro ao meu poeta do coração — Fernando Pessoa, através de Alberto Caeiro — e retomo algo que afirmei linhas atrás: a Literatura dá conta (e com louvor) de conteúdos “que agregam” presentes em livros de autoajuda e similares. A poesia de Caeiro, por exemplo, vale por um manual de Mindfulness ou atenção plena. 

“A espantosa realidade das coisas
 É a minha descoberta de todos os dias.
 Cada coisa é o que é,
 E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
 E quanto isso me basta.  Basta existir para se ser completo” 

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