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photo of a boy listening in headphones

A transformação da escuta musical: do concerto ao fone de ouvido

A escuta musical passou por transformações significativas nas últimas décadas. Houve períodos em que ouvir música era uma atividade que demandava atenção e presença: seja em um concerto, em torno do rádio, ou ao colocar um disco para tocar. Essas situações destacavam a música como elemento central da experiência. Atualmente, no entanto, com o fácil acesso proporcionado pelas plataformas digitais e a constante exposição a estímulos diversos, a escuta tem assumido um papel mais integrado à rotina, funcionando muitas vezes como um acompanhamento para as atividades do dia a dia.

Essa mudança vai além do aspecto prático; ela carrega um significado simbólico. O ato de escutar música perdeu parte de sua magia, e com isso, reduz-se nossa percepção das nuances das composições. Melodia, harmonia, ritmo e timbre — elementos que traduzem a essência de uma obra — muitas vezes ficam em segundo plano. A escuta ativa, que requer atenção intencional e envolvimento, torna-se menos comum. No entanto, é esse estado de receptividade que permite à música cumprir todo o seu potencial: uma forma de arte que nos inspira a sentir e refletir.

A escuta, porém, nunca é neutra, pelo contrário, é um ato interpretativo, um jogo de significados que se desenrola entre a obra e o ouvinte. À medida que novas tecnologias reconfiguram nossas formas de acessar o som, também transformam nossos modos de escutar. A música que outrora habitava o tempo e o espaço com solenidade hoje se espalha por fones de ouvido, playlists e algoritmos, em um fluxo que parece interminável e, paradoxalmente, mais raso. Escutar conscientemente, nesse cenário, é quase um ato de resistência, uma tentativa de recuperar a singularidade de cada som e de cada silêncio.

Escuta detalhada de uma faixa

Agora, vamos escolher uma faixa específica e aplicar essa abordagem. Podemos analisar elementos como o arranjo, as mudanças de dinâmica, os instrumentos que compõem a textura, o contexto, e a história por trás da composição — são muitas possibilidades. Para isso, vou usar como exemplo a música “Volta”, que faz parte do documentário “O Mistério do Samba”. Essa música tem uma história muito legal, que vou resumir aqui.

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No documentário, uma das cenas mais marcantes mostra Marisa Monte ao lado de membros da Velha Guarda da Portela, incluindo Monarco, tentando resgatar um samba do qual ela só lembrava o nome. Monarco, em um esforço de memória, canta um trecho da música, emocionando Marisa, que imediatamente reconhece a beleza da composição. A jornada para redescobrir “Volta” começa quando Marisa visita a casa de Dona Neném, viúva de Manacéa. Em busca de material inédito para o álbum “Tudo Azul”, ela tenta estimular a memória de Dona Neném e de sua filha, Áurea Maria. No início, ambas acreditam que não possuem nada guardado. Contudo, após um tempo, Dona Neném retorna com uma maleta contendo manuscritos e fitas que estavam há muito tempo esquecidos. Entre esses documentos, surge a canção “Volta”, um samba inédito de Manacéa, composto décadas antes, provavelmente entre os anos 1940 e 1950. Sua descoberta é frequentemente descrita como um “achado arqueológico”.

Este é um exemplo de como cada música carrega histórias que vão além de suas notas. Agora, passaremos a analisar a música em si.

“Volta” é estruturada em duas partes:

  • Parte A — Também chamada de primeira, funciona aqui como um grande refrão:

Meu bem, por que estás assim tão triste / Alguma coisa em você existe / A tristeza amor, só nos causa dor / Volta vem cantar, para esquecer, a sua mágoa / Que traz os seus olhos rasos d’água / Que traz os seus olhos rasos d’água

  • Parte B — Também chamada de segunda:

A vida nesse mundo só nos dá prazer / Eu fico muito triste em lhe ver sofrer / Você é a alegria do meu lar / Volta novamente vem cantar, ah meu bem!

Uma curiosidade interessante é que, na versão que Áurea e Marisa conheciam, a segunda parte (B) apresentava uma variação no início da letra:

“Olga, você deve compreender / Que neste mundo só o que me interessa é você.”

Esses detalhes mostram como a música, enquanto criação viva, pode apresentar diferentes nuances e versões ao longo do tempo, dependendo de quem a canta ou recorda. Essa pequena mudança na letra também reflete a memória afetiva e o processo colaborativo de resgate que Marisa Monte realizou.

Na gravação do samba, a estrutura da música segue o formato: A – A – B – A.

No primeiro A, podemos identificar alguns instrumentos acompanhando a voz de Marisa Monte. Consegue perceber quais são?

Se você respondeu violão, cavaquinho e reco-reco, acertou! Seu ouvido está bem “limpo”.

A entrada de Monarco ocorre no trecho final de “os seus olhos…”, e, quando a letra do primeiro A termina, acontece uma transição — O violão faz uma chamada característica, conhecida como “baixaria”, acompanhada pelos demais instrumentos, que constroem a textura e introduzem o segundo A, neste momento, novos instrumentos entram em cena.

Percebeu? Além dos que já estavam, agora temos cuíca, surdo e pandeiro, além do coro que enriquece a sonoridade.

Entre as vozes do coro, destaca-se a marcante presença de Tia Surica. Esse trecho até o início do B é “lá em cima”, ou seja, apresenta uma mudança significativa na dinâmica, com um aumento de intensidade que transmite grande potência.

Quando chegamos à parte B, há uma mudança perceptível: os instrumentos “baixam” a dinâmica. Essa redução se dá principalmente pela saída do coro, mas também pela diminuição da intensidade geral dos instrumentos, que ajustam sua “pegada” para destacar a voz solista de Monarco.

Ao retornar para o terceiro A, o coro reaparece e a dinâmica “sobe” novamente, trazendo de volta a energia da canção. Apesar de todas essas mudanças dinâmicas e do caráter sincopado da música, o pulso permanece constante, garantindo a estabilidade rítmica que sustenta toda a composição.

Manuscrito com a letra de “Volta”.

Que tal você tentar algo semelhante? Escolha uma música que ressoe com você e dedique um momento para ouvi-la com total atenção. Observe os detalhes: os instrumentos que compõem a textura, as dinâmicas, as nuances na interpretação e até mesmo as histórias que ela pode carregar. Experimente desconstruir a estrutura, identificar camadas e permitir que a música revele mais do que o habitual.


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