Coisa curiosa de se anotar: nenhum desses viajantes tinha um ar irritado contra a besta feroz pendurada em seu pescoço e colada às suas costas. Dir-se-ia que as consideravam como fazendo parte deles mesmos.
Charles Baudelaire
Até onde estamos dispostos a ir com o nosso ofício como escritores?
A vida anda muito corrida.
Eis a justificativa mais comum ao fato de não estarmos escrevendo tanto quanto gostaríamos — e, não sem razão, pois a vida anda muito corrida mesmo. Realizamos cada vez mais atividades, e entre o que fazemos para sobreviver e o que fazemos para descansar há um monte de queríamos estar fazendo — entre eles, a escrita.
Pedir para alguém passar duas, quem sabe três horas, parado, ora olhando para o nada, ora transferindo ideias para o papel ou para um arquivo na nuvem é pedir demais mesmo.
E, veja, não estou criticando ninguém, não mesmo. Se pensarmos friamente sobre isso, reservar momentos de pura reflexão, como são as sessões de escrita, vai na contramão de como nos relacionamos com o mundo, a sociedade e os meios de produção e consumo hoje — como eu já explorei em Cismas anteriores.
Mas o que aconteceria se baixássemos um pouco a régua? Em outras palavras, se reavaliássemos nossas rotinas, será que não chegaríamos à conclusão de que a sensação de estarmos sempre ocupados não é ilusória?
A ideia não é nem nova e nem original, mas ela bateu com força em mim depois de ver um trecho da palestra “A filosofia na poesia de Fernando Pessoa”, da filósofa Lúcia Helena Galvão.
O trecho, pinçado pelo canal Inspiração Literária, tem vários pontos interessantes. Vou listá-los em ordem de importância para esta Cisma, e não na ordem em que são mostrados.
Como nos conta Lúcia Helena Galvão, a vida de Fernando Pessoa era comum, tão comum quanto seus poemas são incomuns. Em seus diários, o autor fazia as contas de quantos dólares precisava para sobreviver e, baseado nessas contas, trabalhava somente o suficiente para obtê-los. No tempo que lhe restava, ele escrevia, escrevia e escrevia.
Sobreviver, para Fernando Pessoa, era alugar uma casa em um local muito modesto e ir quase todas as noites em um café chamado “À Brasileira” para tomar, segundo relatos, doses significativas de vinho, cerveja e cachaça. (Dou licença poética para cada um escolher as suas próprias doses significativas do que quer que seja).
Galvão nos conta também que, em determinado momento, Fernando Pessoa já não lia mais e nem conseguia se relacionar com outras pessoas. Isso porque ele não encontrava mais o que buscava nem os livros e nem a convivência com outras pessoas — a ponto de preferir conversar com seus heterônimos, que melhor o compreendiam.
Comparado com o modo de vida que levamos hoje, em especial a vida urbana e mega conectada, o modo de vida de Fernando Pessoa nos parece, no mínimo, um exagero — e a bem da verdade, seria quase impossível adaptar o modo de vida dele ao Brasil de hoje por um simples motivo: conseguir o mínimo para sobreviver nos toma quase todo o nosso tempo.
E bem, se tem algo que demanda tempo é o combo reflexão e escrita.
Mas tem outro elemento que a escrita demanda, e que está em falta nos nossos dias: equilíbrio.
Sim, equilíbrio. Você pode argumentar que se sente inspirado a escrever durante picos emocionais (eu também me sinto), mas ninguém constrói uma carreira de escrita com base na inspiração. Escrita é ofício, ofício de dia sim, dia também, haja vontade de escrever ou não.
De certa forma, a vida simples que Fernando Pessoa levava era a sua zona de conforto, a sua fonte de equilíbrio. Era essa vida que lhe dava abertura para investir suas energias não apenas na escrita — a escrita era apenas o fim — mas também nas reflexões filosóficas que vazam de seus poemas.
Exemplos de poemas não faltam — mas eu recomendo fortemente que você clique aqui e ouça agora o poema Tabacaria, recitado pelo Abujamra. Pode ir lá, eu espero.
Mas é possível escrever textos maravilhosos nascidos de insights, na correria do dia a dia, frutos de desequilíbrios e desafios, alguns dirão. É possível, é claro que é possível — mas contar com isso é limitar a nossa capacidade criativa.
Pensando assim, que dá pra encaixar a escrita na correria do dia, a gente está baixando a régua errada.
Como Sísifo (já apontava Albert Camus), deixamos que nosso melhor seja sugado pelo trabalho para que possamos sobreviver e, quando temos algum tempo livre, ou estamos exauridos ou nos vemos impelidos a nos dedicar a alguma atividade social.
Então como criar, como refletir, como desenvolver as habilidades de escrita?
Para cada um, a resposta será diferente. Mas há um elemento, no entanto, que nos aponta uma dica, um caminho possível em busca dessa abertura:
Quanto de tudo que você faz você faz para sobreviver?
Existem muitas pessoas que sim, que precisam trabalhar, e muito, para sobreviver. E muitas dessas pessoas, sim, encontram tempo para escrever. Ao mesmo tempo, existem muitas pessoas que se ocupam em demasia com atividades e, quando se dão conta, estão frustradas por não conseguirem fazer algo — no nosso caso, por não conseguirem escrever.
Esse ocupar-se em demasia é uma característica do nosso tempo. Há tanta informação incrível disponível na internet, tantos eventos acontecendo ao mesmo tempo, tanta gente interessante para conhecer que é normal nos sentirmos perdidos.
Dedicar-se ao ofício da escrita, sempre repito, exige doses cavalares de autoconhecimento. Quanto mais você se conhecer, melhores serão suas criações.
Portanto, cabe a você, e somente a você, avaliar até onde está disposto a ir com o seu ofício como escritor. Quanto do seu tempo você está disposto a investir em um ofício que, inicialmente, é sem remuneração e sem utilidade, que aos olhos do mundo será um grande nada — mas que, para você, será o grande tudo.
Mesmo sabendo que não posso querer ser nada, assim como Fernando Pessoa, tenho em mim todos os sonhos do mundo — entre eles, o sonho de que todos possam desenvolver suas habilidades criativas. Mas, assim como Baudelaire, sei que no final do dia é cada um com a sua quimera — estejamos conscientes delas ou não.