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Cheirar o tempo Lambrequim Cisma Mylle Pampuch Amora

Cheirar o tempo

O tempo tem a característica volátil de ser passageiro. Volátil porque, apesar da inegável passagem, ele não passa igual para todos os seres — e para o mesmo ser, nunca igual em todos os momentos. Assim como sua passagem, é inegável também seu esgotamento. Conclusões nos confortam: exceto a que culmina no ponto final.

Vendemos nosso tempo ou o entregamos de bandeja. Preciso de um tempo pra mim. Preciso de tempo pra pensar. A arte leva tempo para ser feita, assim como tudo leva o tempo que precisar. No jogo de rotação e translação da Terra, somos expectadores participativos do teatro que o Sol e a Lua nos colocam para atuar. Nossos cérebros adaptáveis se iludem em um tempo que se dilui e sobra: temos todo o tempo do mundo. Mas é o mundo que tem todo o nosso tempo.

Os cães cheiram o tempo. É pelo olfato que eles sabem há quanto tempo seus tutores estão longe, e quando determinados eventos se aproximam. Também medem o tempo pela luz e pelos sons, mas o cheiro é o principal guia, junto com o ciclo circadiano. Regulados pelo instinto, o tempo para eles é uma preciosidade sem passado nem futuro: apenas o infinito agora.

A presença é medida por moléculas olfativas, e as horas calculadas através da rotina. Dependendo do que e como se faz, é hora de. Um jeito de falar, os sons da casa, um trocar de roupa, um carinho. O tempo para os cães é como deveria ser para nós: pura expressão de existência — e, talvez por isso, o tempo deles seja tão curto: porque existir demanda todo tempo disponível.

Vender o tempo é socialmente aceito. Todos os adultos que não nasceram herdeiros já se venderam alguma vez na vida — e possivelmente vendam suas vidas inteiras. É preciso viver, sustentar, pagar, conquistar, mostrar: todas motivações válidas em seus contextos. Mas também vendemos valores, sonhos, saúde, escolhas. Vendemos até nossa personalidade se o salário compensar (e se não compensar também). Vendemos quem somos para comprar uma versão daquilo que esperam de nós.

Ao contrário dos cães, nosso tempo nunca é o agora. Ao contrário dos cães, nos projetamos no futuro. Seguimos relógios, calendários, números e planejamentos. Antevemos, combinamos. Temos amanhãs até sabe-se lá quantos anos que vem, elucubrando que da próxima vez será. Ao contrário dos cães, nos achamos donos do futuro.

Fecho os olhos e respiro fundo, em busca das moléculas de ar com cheiros daquilo que amo. De quem eu amo. O ar frio tem cheiro do sol da tarde esquentando meu corpo. Os sons são batidas de uma construção como tantas outras, de prédios tomando o horizonte de uma capital sendo verticalizada. Ouço motores de carros, agudos de freios e vozes dissipando ao fundo. Nenhum som afetivo. Abro os olhos. O céu está azul — um cão enxergaria isso e estaria descansando, sem pensar que são 15h34 de uma terça-feira, e o que mais tem na minha lista de tarefas? Pelo cheiro do ar e o abraço do som, saberia que é outono.

Cheirar o tempo não é socialmente aceito. Seguir seu ciclo circadiano também não — a não ser que você seja um cachorro. Mesmo que ninguém nos cobre oficialmente, a pressão interna pode vir cobrar a conta. Mas fazer arte está em seguir instintos, validar ciclos, priorizar rotinas. Está em não se vender por inteiro para um sistema que esmaga nossas identidades. Está em sentir tudo que nos atravessa como forma de honrar existências.

No agora mais puro: está em ser mais cachorro do que gente.


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