Um diálogo caótico com livro A ordem do tempo, de Carlo Rovelli
Entropia
O calor é a agitação microscópica das moléculas. Um chá quente é um chá em que as moléculas se agitam muito. Um chá frio é um chá em que as moléculas se agitam pouco.
A ordem do tempo, página 29
Pessoas nas ruas, enchendo espaços, se batendo, preenchendo tudo com calor; andando, andando, andando; correndo com seus carros, percorrendo seus compromissos — pra quê?, pra quê?; olhos presos no sinal. Todos tentando sem conseguir, perseguindo sem enxergar, apostando sem garantias; todos se debatendo enquanto aumentam o calor no mundo.
Todos se debatem no caos.
Ruas, cidades, regras, horários; todas histórias que aprendemos a seguir em prol de algo que não sabemos nomear. Humanidade? Sobrevivência? Conforto? Pessoas se cruzam, mas não se enxergam; pessoas de longe se influenciam. Joguinhos modernos de uma sociedade sofisticada e cega.
Entropia, dispersão de matéria e energia. Na profusão de eventos, microestados termodinâmicos; uma hora se é, noutra já se muda; numa hora passando e noutra já passou. Miríade de acontecimentos instantâneos que se influenciam; vejo aqui da janela.
Dispersão e retenção: tudo tem um algo importante para alguém.
Presente estendido
O presente estendido é o conjunto de eventos que não são nem passados, nem futuros: existe, assim, como existem seres humanos que não são nem nossos descendentes nem nossos antepassados.
A ordem do tempo, página 45
Ocupados com seus afazeres, eles passam, passam sem saber (ou sabendo, vai saber) que a válvula do tempo os engole a cada passo. A válvula do tempo não é absoluta, mesmo que o tempo não seja o mesmo para todos. O agora de um não é o agora do outro; e das velocidades com que se movem nascem as diferenças.
Insistência em padronizar, porque é mais fácil; economiza energia, todos podem trocar igual. Os microestados não se diferem, ninguém tem que pensar em como aceitar microestados relativos em uma sociedade una.
A sociedade se comporta como a matéria porque é feita de matéria.
Me afasto, sem motivos para ficar aqui. Matérias discutindo questões que não precisavam existir, microquestões que não precisavam tomar energia. Trocam calores, calores que geram mais calores que geram mais calores até cessarem corpos em gelo.
A pomba faz o mesmo voo e pousa no mesmo fio de luz.
Estruturas intrincadas pressionam a válvula do tempo; ocupados, eles se debatem, se repetem, se tensionam e se relaxam achando que aquilo é certo.
Tudo é certo. Tudo é errado. Repetição é economia de energia. Cumprir obrigações para ter o que comer. Moléculas mais frias roubam o calor das que estão em movimento para sobreviver enquanto as que se movem esfriam até desaparecer.
Concretude relativa
O substrato físico que determina a duração e os intervalos temporais — o campo gravitacional — não tem apenas uma dinâmica influenciada pelas massas; é também uma entidade quântica que só passa a ter valores determinados quando interage com alguma coisa. Quando o faz, as durações são granulares e determinadas apenas para aquilo, permanecendo indeterminadas para o resto do universo.
A ordem do tempo, página 75
Nada existe em meio ao que se mexe. Do micro ao macro, nada existe. Nenhuma superfície, nenhuma concretude; nada ao que se agarrar para justificar desejos de permanência. Em pleno movimento, tudo é acontecimento. Borbulham por todos os lados fusões de eventos que se relacionam um com o outro, mas que, ao mesmo tempo, são irrelevantes para os elementos com os quais não interagem.
Por fim, nem mesmo a válvula do tempo existe, já que sua continuidade é apenas mais uma dessas histórias que nos contamos para explicar fenômenos. O tempo é só mais uma sucessão de saltos, minúsculos, imperceptíveis — somos nós que, cegos, repetimos lugares comuns para justificar nossas percepções limitadas.
Sucessão de eventos. Tudo um dia será destruído, mesmo que demore. As pessoas do outro lado da janela correm de um lado para o outro buscando ser algo além de eventos. O desejo é, de fato, irresistível. Permanecer como coisa, mesmo que como coisa efêmera, só para transpor a impermanência de acontecimento. Correm porque se não corressem, desmanchariam. Por aqui, eu corro também.
Ser além de uma passagem, no emaranhado de nossa cegueira. Ser mais do que um piscar de história, mais do que uma bomba de fome e desejos. A gente corre para ser como pedra, que é o mais perto que temos de impermanência.
Mas, por aqui, corro parada. E, parada, preciso reconhecer que me afastei. Me afastei do mundo que corre e agora vivo em um tempo próprio, um tempo que acontece em longos saltos de flutuar no ar. Hoje, se eu me emaranhar na multidão, não serei capaz de acompanhar.
Entre minúsculos saltos, meu tempo deixou de ser.
Mundo sem tempo
A temporalidade está ligada profundamente ao desfocamento. O desfocamento é o fato de que somos ignorantes dos detalhes microscópicos do mundo. O tempo da física, em última análise, é a expressão da nossa ignorância do mundo. O tempo é a ignorância.
A ordem do tempo, página 112
Na física quântica, a variável tempo já não existe. Mesmo assim, as pessoas do outro lado da janela que correm de um lado para o outro correm de um lado para o outro porque o seu tempo — mera narrativa — está se esvaindo.
Tempo é dinheiro, de fato. Duas narrativas empilhadas são mais poderosas do que uma. Correm todos atrás de prazos os que correm atrás do pão.
Mais fácil resumir tudo na variável tempo do que discorrer sobre eventos e suas relações. Mas existe apenas o que acontece; como diria Aristóteles, tempo é mudança. Tempo nada mais é do que comparação e um amontoado de clichês que vão desde “um piscar de olhos” até “a eternidade”.
Essas ideias, aliás, não são novas; já flutuam pelas mentes há algum tempo, mas a quem interessa desmontar o mundo prático? Deixe que as pessoas do outro lado da janela corram de um lado para o outro atrás de suas ilusões, de narrativas coletivas que já perderam o sentido. Deixem que eles existam e depois sumam sem que ninguém perceba a diferença.
Relações. Relações. Relações. Todos que ouvem o chamado compreendem que há algo de errado na corrida do mundo. Todos querem ser além, desde os que correm em movimento até os que — como eu — correm parados. Todos querem ser além, mas ninguém o é porque ninguém consegue ser além do tempo que não existe.
Mas não há saída além de correr. Não há saída porque, mesmo na inexistência do tempo, os eventos ainda existem. Fatos acontecem e é no acontecer que uns ficam e outros vão. Nada de linha lógica, nada de ação e reação; apenas eventos que acontecem uns em relação aos outros em meio ao caos.
Entropia ao invés de energia
Os seres vivos são constituídos por processos semelhantes, que se encadeiam um no outro. As plantas recolhem os fótons de baixa entropia do Sol através da fotossíntese. Os animais se alimentam de baixa entropia ao comerem. (Se precisássemos apenas de energia, e não de entropia, iríamos todos para o calor do deserto do Saara ao invés de comer).
A ordem do tempo, página 125
Trocas. O mundo é imenso — tratando “mundo” como o Universo e não apenas o planeta Terra. Apesar das incontáveis variáveis existentes, dentro de um mesmo sistema, os elementos interagem de forma limitada porque um sistema pressupõe variáveis limitadas.
As pessoas do outro lado da janela correm em carros, ônibus, puxando seus cachorros ou seus carrinhos de recolher lixo; correm porque trocam com o ambiente — ou em busca de ter o que trocar com o ambiente. Correm não pela energia, mas pela entropia.
Se fosse pela energia, bastava ficar no sol.
No asfalto, eles trocam. Interligados pela passagem de uns pelos outros, realizam trocas microscópicas, influenciam-se sem saber. As pessoas que passam diante dos meus olhos do outro lado da janela são parte de um mesmo sistema que interage e depois se dispersa. Ao observá-las, sou também parte do sistema que me influencia, no ir e vir de sons, vibrações, cores e formas.
Em relação aos que correm, estou parada; logo a minha entropia é mais baixa que a deles. Mas a medida da entropia nada mais é do que uma questão de perspectiva; meça meus pensamentos agora e encontrará a velocidade de um trem bala.
Coloco a mão no topo da minha cabeça. Está quente. Pensar também é troca com o ambiente; pensar também produz calor.
Memória
Somos histórias, contidas naqueles vinte centímetros complexos atrás de nossos olhos, linhas desenhadas por vestígios deixados pela mistura de coisas do mundo, e orientadas a prever acontecimentos no futuro, em direção à entropia crescente, num canto um pouco particular deste imenso e desordenado universo.
A ordem do tempo, página 145
Somos máquinas de fabricar passados. Nada existe no tempo além do tempo em que os eventos acontecem. Nada existe no tempo das pessoas que correm do outro lado da janela além da corrida. No mundo físico, não existe antes nem depois; nem passado nem futuro — e, no entanto, dentro das nossas cabeças, existe.
Quem veio antes: a nossa ideia de passado ou a sensação de lembrar?
Olhar os objetos à nossa volta e atribuir-lhes histórias; histórias que cruzam com tantas outras e com a nossa. Somos animais que contam histórias. Sem querer chego ao mesmo ponto, o de que as narrativas governam a sociedade humana — inclusive o tempo.
Entropia, medida da desordem de um sistema em relação a outro. Contar histórias nada mais é do que uma tentativa de ordenar o inordenável que nos rodeia. As pessoas do outro lado da janela correm na esperança de resolver suas questões, atender prazos, ganhar dinheiro — correm movidas por histórias.
Aqui de dentro corro também, como já disse, do meu jeito. Corro atrás de histórias sobre como contar histórias. Sobre como ordenar o caos de dentro ao colocá-lo pra fora e mostrá-lo a outros que entendem de histórias.
Particionamos nossa convivência. Primeiro com nossa espécie, depois em grupos menores que partilham dos mesmos pensamentos, corridas e histórias que as nossas.
O tempo nada mais é do que uma história inventada para medir a memória. O passado só existe porque nos lembramos.
O tempo só existe na nossa cabeça.