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como escritora: formas de existir no mundo (uma busca-manifesto)

Há dez anos abandonei a vida acadêmica (depois de uma graduação completa e mais quatro anos em outra, da qual desisti quase no fim) para me entregar à escrita. Eu já tinha 26 anos e uma frustração enorme porque, mesmo escrevendo desde sempre, não tinha coragem de me assumir ser escritora.

Essa história, descobri depois, ministrando oficinas, é mais comum do que eu poderia imaginar. O medo de se mostrar ronda muitos dos que escrevem — e não à toa.

Quando decidi pela escrita, tracei um objetivo que persigo todos os dias: existir no mundo como escritora. Mas, é claro, só consegui nomear esse sentimento-objetivo hoje, durante a minha primeira aula como mestranda.

As pessoas relacionam mestrado com “guinada de carreira”, porque muita gente vive em função dessas guinadas de carreira quando estuda. A minha busca, no entanto, sempre se pautou em formas de existir no mundo como escritora. É isso, sempre foi e sempre será isso pra mim: faço de tudo porque quero existir no mundo como escritora. Não há nenhum outro lugar que eu queira e, sinceramente, nenhum outro lugar no qual eu caiba.

Eu devo ser um bicho estranho por onde passo, principalmente nesses ambientes formais, porque me afirmo sem delongas. Não preciso dizer “sou escritora, mas também trabalho”. Todo respeito a quem faz isso, mas pra mim não serve. Não há nada mais que eu faça além de ser escritora, ninguém mais que eu queira ser. Nenhuma outra máscara para usar, nenhum enfeite ou disfarce, nada. Quanto mais me afirmo, mais confortável existo nesse espaço, e mais me coloco atenta para o mundo, aberta para o mundo.

E isso é importante porque se apresentar como escritora ao mundo é um troço que amedronta, que deprime, que descredita, então é preferível mentir (em especial, para si mesma). Preencher formulários de banco com profissões correlatas porque o banco diz que escritora é uma profissão inválida. Contar pra família que você comete uns livros por ano, e ver o sorriso da sua avó recebendo aqueles livros autografados que talvez ela nunca vá ler. Aceitar que seu pai ou sua mãe (ou, com azar, ambos) nunca vai entender de fato o que você faz, muito menos reconhecer que você faz aquilo muito bem. E mesmo assim continuar dizendo “sou escritora”.

Claro que se admitir escritora não é a única forma estranha de existir no mundo — mas, além de ser uma das formas, é a experiência que me permeia e que, até aqui, definiu minha vida. Porque não é só uma profissão, nem só um passatempo, nem só um capricho: é uma maneira de existir mesmo. Não sou escritora, eu existo escritora, porque estou todo o tempo vivendo em função de. E isso é de uma loucura, de uma intensidade e de um abismo, e às vezes me assombra como a coisa vem como veio agora, explosiva aqui dentro, sem cansaço que segure a necessidade de despejar em palavras. É uma necessidade e ao mesmo tempo um alvoroço e ao mesmo tempo uma contemplação.

Colocado assim, existir escritora pode soar simples, mas tem um custo. Essa existência cobra um preço alto, e exatamente por isso é tão difícil admitir-se. Conheço pouquíssimas pessoas que o fazem, porque tem que ser muito descolado da realidade ou herdeiro para viver uma existência plena com a escrita. É mais comum ver pessoas se matando de trabalhar e também escrevendo do que fazendo tudo o que podem para existir em escrita. Afinal, como pagar as contas, sobreviver, ter bons relacionamentos sociais e familiares e ainda passar dias inteiros escrevendo?

Algo certamente precisará ser sacrificado.

O que me afastou da vida acadêmica e também da vida profissional (afinal, sempre fui autônoma) foi a pressão por rendimento. Nesses dois ambientes há uma necessidade de se afirmar como alguém que é aceito pelo restante da sociedade — e, para isso, é preciso fazer muitas coisas que demandam muito tempo.

Por aqui, sempre encarei o tempo como algo precioso demais para simplesmente ser investido em coisas que não queremos fazer. E pra quê tudo isso, afinal? O que queremos tanto afirmar gastando todo o nosso tempo em trabalho, guinadas de carreira e momentos instagramáveis?

Sempre cismei (e muito antes de cismar por aqui) com pessoas que eu via que podiam fazer o mergulho na escrita (ou em qualquer outra forma de arte) mas não o faziam por medo. A essa altura da vida, posso dizer que tenho um olhar treinado pra isso, pra ver o potencial criativo latente das pessoas — e, com sorte, espero ter conseguido desatar os nós de algumas que intencionei ajudar. 

Mas desatar nós é apenas um começo. Essa existência em escrita exige doses cavalares de dedicação e de ambição. É preciso querer muito e também se dedicar muito a isso — e, sinceramente, não conheço outro jeito.

Vivi muitos anos frustrada, deprimida e me culpando antes de dizer chega! e mergulhar de vez na escrita. Eu ficava me enganando, achando que podia fazer outras coisas e escrever quando sobrasse um tempo. Achei que viver de vender miçanga na praia (que, na minha versão, eram bottons personalizados, mas isso é outra história) e fugir da vida acadêmica me faria ter tempo de sobra pra escrever.

Bem, ficou claro que isso não funcionou por aqui. 

O que funcionou foi eu assumir que era escritora em todo e qualquer lugar que eu fosse. Foi colocar a escrita como a prioridade do meu dia. Foi arranjar meios de pagar as contas trabalhando com a escrita da forma como eu queria. Foi viver anos inteiros em função da escrita. Foi falar com as pessoas próximas e explicar pra elas que eu precisava de espaço para escrever. 

E então, coisas mágicas começaram a acontecer — como o Lambrequim, como você me lendo agora, como eu chegando numa turma de mestrado, em que cada um conta sobre suas experiências profissionais orgulhosos das suas agendas cheias e das suas pesquisas anteriores, e apenas dizer: cheguei até aqui porque escrevo.

No fim do dia, a questão é simples, como Anne Lamott coloca em seu livro:

” (…) esse negócio de se tornar consciente, de ser escritor, no fundo significa o seguinte: até que ponto estou disposto a estar vivo?”

Ao máximo.

P.S.: coincidências: eu e a Patricia citamos o livro Palavra por Palavra, da Anne Lamott porque o lemos na mesma época — o mesmo livro que ganhei de presente da Glaucia Ventura exatamente porque ela achou que o título poderia contribuir para a minha pesquisa de mestrado. Isso é a definição de beleza, de rede e de potência que a literatura é capaz de gerar. 


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