Escrita é princípio e processo. Princípio porque, apesar de sermos capazes de criar sem antes escrever, ao escrevermos ganhamos uma nova dimensão sobre nossas ideias antes de executá-las — e, em consequência disso, escrever é também processo, um ir e vir de testes, brainstorms e experimentos que fazemos ao transformar nossos pensamentos em palavras. Experimentamos com nós mesmos, de dentro para fora — e quanto mais escrevemos, mais somos capazes de nos enxergar de fora para dentro.
Toda escrita é experimento interno e pessoal, da acadêmica à terapêutica, da ficcional à jornalística, de um poema de amor à uma mensagem no WhatsApp. Mesmo não sendo essenciais para a nossa sobrevivência, as habilidades de ler e escrever modificaram o nosso cérebro. Esse nosso encontro de agora — comigo escrevendo e você lendo — é fruto de seis mil anos de cultura e partilha de códigos, símbolos e sentidos. Por isso, cada ato de escrita é também uma celebração, um encontro com quem fomos e com quem seremos.
Por ser processo, a escrita pede tempo e reflexão. Mesmo a mensagem mais simples e direta precisa ser pensada antes de ser enviada. Apesar da linguagem não dar conta de traduzir nossos pensamentos e sentimentos com exatidão, tudo o que escrevemos revela algo sobre nós. Por isso, ter tempo para refletir antes de escrever e também sobre o que escrevemos não só faz parte do processo de escrita como o fortalece.
Penso que todas as formas de escrita, mesmo as mais técnicas, possibilitam a quem escreve uma dimensão de liberdade, de criatividade. Escrever é dizer. Mesmo ante o jogo de citações e influências, é preciso ter alguma linha de raciocínio para construir um argumento — e é nessa construção que se encontra o ato criativo. Se criar é o ato de produzir algo que antes não existia no mundo natural, todo texto, por mais técnico que seja, é um ato de criação.
No entanto, para atingir essa liberdade criativa na escrita — que, para mim, é a habilidade de sentar e começar a escrever mesmo sem ter uma ideia exata do que se quer dizer ou dos efeitos que se pretende produzir — é essencial exercitar o nosso cérebro (ou, se preferir, manter a mente aberta) para que ele esteja pronto para a escrita que for necessária, sempre que for necessária.
Escrever de forma criativa e livre é a melhor forma de celebrar a construção cultural representada pela linguagem escrita. Mesmo que escrever não seja essencial para a nossa sobrevivência, nós sobre-vivemos, do ponto de vista histórico, por causa dela. A escrita nos faz evoluir, nos faz sonhar, nos leva a conhecer ideias, pensamentos e expressões de outros tempos — e muitos desses pensamentos continuam influenciando as nossas vidas no agora, quer você goste ou não.
Por isso, quero te convidar para escrever — mas não para escrever de qualquer jeito, com pressa ou com receio. Quero que você escreva pensando em cada palavra, saboreando a escrita. Quero que, enquanto você escreve, escute cada uma das palavras dentro da sua cabeça e converse com o seu eu mais íntimo, deixando que ele se expresse tanto quanto o seu eu mais superficial. Que você seja criativo, teimoso, livre e, principalmente, respeitoso à liberdade do outro. Que através da escrita você possa criar, comunicar e derrubar cada uma das barreiras que te separam do seu eu pleno.
Eu sei, posso estar soando sonhadora e idealista — mas, para que o contrato entre nós funcione, não posso mentir sobre quem sou nem sobre o que acredito. Acredito que a escrita transforma o mundo ao redor de cada um de quem escreve. Acredito nisso não só porque acontece comigo dia após dia, mas também porque vejo acontecer com várias pessoas que se dedicam à escrita criativa.
A escrita se revela em nós na medida em que nos revelamos a ela. Tudo o que precisamos fazer é nos permitir sentar, refletir e escrever com a consciência de que, ao invés de produzir obras primas, nós precisamos mesmo (e, arrisco dizer, com verdadeira urgência) conhecer, explorar e aprender com o processo.