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Fraturas e outras cismas

por Patricia Dias

Inspirada na Mylle e suas cismas, (aliás, adoro o termo “cismar”) quero compartilhar uma das minhas: os livros difíceis. Não estou falando daqueles clássicos de linguagem rebuscada ou das narrativas experimentais, nada disso, e sim, os livros de ficção que abordam temas pesados. Nesse pacote entram os temas fraturantes, as questões que geram desconforto e polêmica, como morte, violência, sofrimento, sexualidade, entre outros.

Encontrei um diálogo interessante no livro As Variações Bradshaw de Rachel Cusk:

“Você deveria ler livros alegres. Por que tornar a vida mais difícil?”

“Não sei, nunca pensei nisso. Você lê livros alegres?”

“Eu leio revistas”, responde Olga.   

Diferente da personagem Olga, não gosto de leituras leves — estou mais para Kafka, que dizia que as boas leituras são as que nos mordem e picam, e nos despertam como murros no cérebro. Aprecio uma narrativa desafiadora, com personagens complexos e envolvendo questões familiares. Gosto da sensação de fechar um livro sentindo os tais “murros no cérebro”, ou ficar dias digerindo uma determinada obra. Por outro lado, entendo e respeito quem prefira outros gêneros, pois, como Daniel Pennac na obra Como um Romance, defendo os Direitos do Leitor — especialmente ler o que mais agrada, sem regras ou cobranças. 

Pennac fala muito sobre a gratuidade da leitura, ou seja, ler e “não pedir nada em troca”. Como mediadora, costumo ser a ponte entre o livro e o leitor, buscando despertar a curiosidade do outro. Talvez grande desafio seja aguardar o tempo de cada leitor e respeitar seus silêncios. Com o devido respeito às individualidades, sempre que possível, recomendo livros mais densos. Claro que nem sempre o encontro entre livro e leitor acontece na hora certa — nesses casos, basta devolver o livro na estante e retomar em outra ocasião — mas quando ocorre o encaixe perfeito, o resultado costuma ser transformador.

Mas voltando à questão da personagem Olga: para que ler sobre tais temas quando os noticiários estão repletos de notícias ruins, afinal? Não posso afirmar que a Literatura seja capaz de mudar o mundo — apesar de tornar o meu mundo melhor todos os dias — mas faz lá suas contribuições.  Diante do horror e das fraturas humanas, a Literatura não oferece remendos, mas faz algo simples e incrivelmente potente: nomeia o indizível. Determinadas leituras exigem coragem, pois colocam o leitor cara a cara com a ferida, e o consolo vem em forma de palavras. Através da linguagem é possível nomear dores e perdas; identificar-se ou não com determinado personagem; criar as próprias mitologias e entender mais do mundo e, por conseguinte, de si mesmo.

As dificuldades estão sempre nos rondando de alguma forma, e tentar evitar temas que geram desconforto, mesmo no caso de crianças e adolescentes, nunca é a melhor solução. O ato de evitar os problemas a todo custo me lembra o conto A Casa Tomada de Julio Cortázar. Os personagens ignoram os acontecimentos e seguem a vida, até o momento em que a situação se torna insustentável. Vale a leitura.

Lembro também de um ditado popular que ouvia muito na infância: “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. De fato, muitas vezes não temos escolha, e se não podemos fugir dos problemas, ao menos podemos fazer uso da linguagem para lidar melhor com o mundo em que habitamos. A linguagem literária expõe questões, subverte, nomeia, recria, em um exercício refinado de elaboração. Um jogo que permite ao leitor a reflexão, o posicionamento crítico e o protagonismo frente aos embates.

Por mais estranho que possa parecer, é justamente nos piores momentos que a Literatura, e a Arte de modo geral, devem prevalecer. Afinal, segundo Pennac, a virtude paradoxal da leitura está em ser capaz de “nos abstrair do mundo para lhe emprestar um sentido”.


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