por Patricia Dias
Semanas atrás a coluna Cismas falava da inutilidade da escrita frente ao mundo real — escrevo ou coloco o arroz para cozinhar. Me identifiquei bastante, pois vivo o mesmo dilema.
Lembrei de um trecho que li recentemente e me capturou. Italo Calvino, no livro Por que ler os Clássicos, ao falar sobre ler ou não os grandes clássicos, usa como exemplo uma história envolvendo Sócrates. Conta-se que enquanto aguardava a cicuta (sua sentença de morte), o filósofo aprendia uma ária com a flauta, quando alguém perguntou: “Para que lhe servirá?” “Para aprender uma ária antes de morrer”, respondeu.
Li várias vezes pensando “É isso!”. Embora seja uma explicação que não diz muita coisa, me apropriei dessas palavras e nelas encontrei conforto. Indo mais a fundo, percebo o quanto de liberdade e subversão estão contidas nessa ideia — aparentemente simples — de fazer algo por vontade própria e sem utilidade prática.
Com frequência ouço perguntas semelhantes, ou vejo o questionamento estampado na cara das pessoas — e, talvez por tanta pressão, eu mesma acabo me perguntando: Afinal, para que serve tanto livro, curso e uma pós-graduação em Literatura? Qual o sentido de investir esforço, tempo e dinheiro em atividades que não geram retorno financeiro?
É forte a ideia de que a dedicação à leitura e à Arte de modo geral é um luxo, uma atividade supérflua. Por outro lado, fazer coisas em prol do nosso prazer e bem-estar, priorizando nossa saúde mental, não agrada a ninguém além de nós mesmos. O importante é insistir na velha máxima “tempo é dinheiro” e atrelar o nosso valor ao que somos capazes de produzir como mercadoria, sem reconhecer Arte e cultura como riquezas de outra natureza.
Temos um longo caminho de luta e insistência pela valorização da sensibilidade, e toda pequena transgressão conta, mesmo que aos olhos dos demais estejamos “carregando água na peneira” como o poeta Manoel de Barros.
O mestre Antonio Candido discute essa questão no famoso texto O Direito à Literatura. Precisamos de cultura e beleza tanto quanto precisamos de direitos básicos como alimentação e moradia. Como seres de linguagem, temos a necessidade de ouvir histórias e de criar nossas próprias narrativas. Precisamos da palavra, da ficção e do sonho para construirmos nossa subjetividade e nos tornamos mais humanos.
A antropóloga Michèle Petit fala uma coisa muito bonita. “A leitura é algo que nos escapa”, não é da ordem do tangível, mas do sensível, “lemos nas bordas, nas margens da vida, nos limites do mundo”. E justamente por habitar esse não-lugar, é impossível ditar regras ou respostas fechadas. Cada pessoa irá estruturar sua própria noção de inutilidade x utilidade, baseada no próprio desejo e no que se dispõe a abrir mão.
Eu me disponho a criar brechas para arejar os sentidos. Faço trocas e organizo o meu tempo priorizando o meu desejo pela literatura e pela escrita — e a tal inutilidade tem me proporcionado momentos inesquecíveis, uma espécie de bônus, que nenhuma das tarefas úteis do cotidiano poderia proporcionar.
A alegria e o frio na barriga de me aventurar em experiências literárias pela primeira vez: ministrar oficinas, publicar, ouvir a narração de um texto/poema meu, mediar clubes e rodas de leitura, conhecer “pessoas dos livros”, ouvir autores que admiro, presenciar o nascimento dos textos de colegas.
Em agosto, vivi um desses momentos imensuráveis em uma oficina de contos com o autor João Anzanello Carrascoza. Uma tarde inteira me deliciando com seus conhecimentos literários e sua delicadeza.
Como conclusão da oficina tínhamos a possibilidade de enviar um microconto para apreciação do autor. Fiquei naquele embate, mandar ou não mandar; em cima do horário limite, ousei enviar, morrendo de vergonha, lógico.
Viver uma rotina meramente produtiva aos poucos vai embaçando nossas lentes e roubando a graça das coisas.
No dia seguinte, enquanto encaminhava meu pedido para o açougue, veio a notificação da resposta. Tremor, rubor, palpitações, sorriso no rosto — sinais de uma paixão literária cada dia mais viva.