Para a coleção de assuntos que me perseguem (ou seria coisa de algoritmo?): ter ou não ter mais livros do que a minha capacidade de lê-los? Há meses, dou de cara com posts com opiniões diversas sobre possuir ou não uma biblioteca pessoal, desde acumuladores declarados a minimalistas ferrenhos. Normalmente o assunto chega até mim sem que eu o procure, como um acaso, em diferentes redes sociais, horários, dispositivos e até locais wi-fis (e, consequentemente, IPs) diferentes.
Claro que não tem nada de acaso nem de perseguição nisso — só a prova de que o deus algoritmo conhece minhas cismas melhor que eu. O motivo do “acaso” é óbvio: estou incomodada com a pilha de leituras que só cresce.
Como tudo na internet, cada um posta o seu ponto de vista para refutar ou apoiar a ideia de juntar mais livros do que o tempo de vida para de lê-los. Os que a refutam, argumentam que muitos daqueles livros eram irrelevantes, ainda mais os comprados só pela capa variante ou pelos brindes. Ao vendê-los, as pessoas contam que se sentem melhores, com mais espaço em casa e algum dinheiro no bolso.
Há os que afirmam que o fim da vida significaria também o descarte de toda uma biblioteca, com o trágico momento em que os livros seriam lançados na sarjeta com o único propósito de serem reciclados. Por isso, algumas pessoas preferem manter suas bibliotecas pessoais enxutas, passando pra frente os títulos já lidos.
Existem ainda os que seguem a vida minimalista — seja por necessidade ou por preferência — algumas vezes preferindo livros digitais aos físicos, já que podem ser facilmente guardados em nuvens ou jogados fora ou pirateados.
Esses três argumentos e suas variações atribuem ao livro uma conotação utilitária. Existem vários valores a serem atribuídos ao livro além do utilitário, e até seria normal uma pessoas sem o hábito da leitura não perceberem valor algum aos livros, mas… pessoas com o hábito da leitura entendendo o livro como um objeto de consumo que precisa ser útil para permanecer na prateleira?
Pra ficar claro: livros são inúteis. Eles podem ser bonitos, podemos ter afeto por eles, considerá-los nossos amigos — ou outra analogia que você preferir —, mas é só. Querer que um livro seja útil é como usar uma cadeira para jogar no coleguinha escroto durante um debate: livros não foram feitos para serem úteis assim como cadeiras não foram feitas para serem jogadas.
Por outro lado, há o grupo de pessoas que defende a ideia do “quanto mais livros, melhor”. Tem até uma citação atribuída de forma duvidosa à Umberto Eco rolando pela internet sobre a felicidade de se manter uma grande biblioteca: em resumo, quanto mais livros melhor, porque assim garantimos que vamos encontrar o que precisamos, quando precisamos na nossa estante. A citação é como um luxo para pessoas como eu, que compram livros e os mantêm lacrados até o dia de lê-los: de que temos o aval de um grande intelectual, com uma biblioteca com mais de 50 mil livros, para continuar a fazer o que estamos fazendo.
Existe até uma palavra em japonês para designar esse lugar insólito, que não se identifica nem com o bibliógrafo focado em reunir livros sobre um único tema, nem com o acumulador incontrolável. Tsundoku (das palavras tsunde, empilhar; oku, deixar correr; e doku, ler) dá nome à prática de comprar mais livros do que o tempo disponível para lê-los — ou seja, um nome japonês para juntador de livros.
Além de inúteis, encher uma estante de livros não caracteriza uma coleção — e talvez aí resida a linha tênue entre ser um acumulador e se colocar no processo de construção de uma biblioteca pessoal. Organizando minhas estantes outro dia, percebi que posso agrupar os títulos mais ou menos por assunto, mas que, no geral, tenho livros variados, adquiridos com a promessa de descobrir algo novo neles algum dia. Nenhuma certeza além da que talvez eu possa fazê-lo.
A espetacularização do produto livro e seus autores em feiras, como as Bienais do Rio de Janeiro e de São Paulo, coloca a cena do livro em constante urgência. A sensação (que, aliás, perpassa todo o nosso cotidiano) é a de que sempre há um novo livro para ler, melhor e mais atualizado do que o anterior, e que nunca estaremos em dia com nossas pesquisas e leituras.
Talvez seja a nossa relação com a leitura que esteja quebrada. Justificamos algo positivo, como o ato de desapegar de um objeto para que outra pessoa usufrua dele, com argumentos utilitaristas e minimalistas. Nos culpamos por almejar mais livros do que podemos ler, nos julgando acumuladores e consumistas. Nos dois casos, não lemos tanto quanto gostaríamos porque, no mundo de hoje, ler é inútil. Um ato de solitude, concentração e entrega. Um ato transformador, capaz de criar novas ligações entre áreas do nosso cérebro, como nos conta Maryanne Wolf — ligações que as interrupções provocadas pela era digital estão interrompendo.
O livro é inútil — mas ler o livro não é.