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Lugares entrecortados

É mais simples e direto, mais ameno. Na parede, o craquelado da tinta denuncia camadas de histórias antes da minha. As cores escolhidas por quem ali passou, como um mapa de possibilidades cobrindo umas às outras — inclusive eu mesma já havia coberto as anteriores, assim que cheguei. Cada arrastada de móvel, cada decisão; casa alugada é sempre assim: a gente chega e sobrescreve os sonhos de quem passou antes. Imagino-me a última história ao invés de mais uma; mero conforto.

Da janela, devem ter visto o horizonte, os primeiros moradores. Cresceram com mais verde do que cinza, e ruas de pó, talvez. Andavam descalços antes de tudo ser planejado, asfaltado, urbanizado, gourmetizado. Antes de ser prédio comercial e do encanamento de plástico. Prédios antigos são bons por causa disso: eles nos contam histórias como anciões de concreto.

Quando olhei nos olhos dela, da mulher que aqui cresceu, vi desconfiança. Por trás das lentes grossas e das bochechas protuberantes, ela não quis me ver como eu pedi, com os olhos. Talvez não só o desdém, mas também a ligeira letargia, tenha me preocupado. Ou ela toma algum medicamento ou não está nem aí para ninguém.

Se eu tivesse a casa onde cresci, (acho que) não a locaria. Apego material, preciosismo, chame do que quiser, mas a ideia de ter histórias sobrescritas à minha me incomoda. Eu mesma trataria de reescrever minha história quantas vezes fossem necessárias. Eu conversaria com a casa e ela comigo, numa relação íntima e intimista de simbiose em que o concreto seria minha segunda pele.

A casa da minha infância (ao menos a casa em que morei dos 6 aos 20 anos) tem meus escritos na parede. Lembro-me bem de já ter esse desejo de permanência aos 10 anos, quando, no meio de uma reforma, escrevi nos tijolos da parede recém-levantada. Há algo irresistível sobre escrever nas paredes (com ou sem reboco) como se a impermanência não atingisse o que se rabisca na horizontal.

Toda casa fala comigo, nas sutilezas. Mesmo sendo uma conversa extensa, nós nunca nos permitimos conhecer de todo. Enquanto me entranho nela, ela é uma grande caixa que guarda a mim e aos meus segredos pelo tempo que durar o acordo. Um papel que me dá direitos e deveres sobre o concreto. Temo que se desfaça (o papel, o acordo, o concreto) mas, ainda assim, aposto, porque só vive de apostar quem nada tem.

Estou sempre de passagem (pelas casas, pelas ruas, pelos lugares), mesmo quando deposito os objetos que chamo de meus em cômodos que elejo como moradas. O flanar, único permanente, é uma curiosidade que nunca cessa. Todo dia algo na percepção se expande enquanto de outro algo me esqueço até resgatá-lo, meses depois, numa eterna dança de lugares entrecortados em que residi.

No entanto, há um padrão escondido em cada escolha. No invisível que carrego com os objetos de um lado para o outro, há algo talvez nascido lá, na casa da infância; um algo que olho com a mesma desconfiança, a mesma preguiça e o mesmo desdém com os quais fui olhada por quem aqui cresceu: o olhar de quem não quer ver.

Sou eu agora na janela desse talvez antes quarto, antes galeria de arte, antes salão de beleza, antes escritório de advocacia, e todas as histórias de antes que eu, sozinha, seria incapaz de recontar. Sou eu agora na janela, quase na esquina, olhando o movimento de duas ruas para logo esquecê-lo, voltar ao computador e continuar a escrever sobre lembrar e esquecer. Sou eu agora na janela emoldurando um novo trecho de mundo; depositando objetos que tenho como essenciais; perguntando que cidade é essa que a janela viu crescer. Sou eu agora nessa janela, mas poderia ser qualquer um que se prestasse à aventura de estar aqui. 

Bonito pensar que deixamos algo nas camadas de tinta que abandonamos, como epitélios dos nossos rituais de passagem; uma história escrita através das marcas deixadas durante os protótipos de tempo em cada casa. No entanto, a beleza das narrativas críveis, plenas de satisfação, é só mais uma narrativa. A vida está mais para o caos de permitir que uma legião de desconhecidos reescreva e ressignifique o seu reduto de infância, criando tantas camadas de histórias até que seja impossível de ler.


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