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não sou mais o livro que publiquei

1.

a gente senta, escreve um monte e, um dia, transforma o amontoado em livro. tenta dar sentido para a coisa, ou simplesmente junta o que mais gosta por seguidas leituras. faz uma capa, dá um título, chama de seu. torna público, comercializa, dá de presente. autografa e dedica. tem vezes que chega até a dizer que é a grande realização da vida. 

2.

o tempo passa. a gente continua amontoando escritos. estuda, lê, se especializa. opera mudanças no corpo, troca de células. atravessa e é atravessada por experiências. o livro publicado fica.

3.

na estante, uma coleção de eus do passado (ao menos antes do chat gpt). séries de pensamentos congelados de alguéns vários, mas virtuais no atual. todo livro aberto é janela para uma mente que não existe mais.

4.

a construção de uma obra é permissão-desapego. a gente se permite fazer, (apesar-acima de tudo) e deixa ir o que não faz parte do engenho. é algo além, que não se encaixa no produzir-mercantilizar, mas também não se resume a produzir arte pela arte. 

construir uma obra é intenção com cuidado.

5.

o passado a gente olha para entender o presente. o nosso passado; o passado dos eus que queremos reverberar. mas o livro, mesmo estático, é correnteza — e a gente entra nele pra se banhar, beber das suas águas, dar-receber e seguir em frente. 

6.

mesmo o nosso livro nunca é nosso mesmo de novo. a gente só o tem uma vez, enquanto o vive em profundidade. é o corpo que escreve o livro, com suas explosões de hormônios e cansaços. por isso que livro escrito aos pedaços não é uníssono, mas dialógico, como uma longa conversa com nós mesmos.

7.

de repente, não somos mais aquilo que escrevemos, assim como não somos mais quem um dia fomos. a gente não quer mais mostrar aquilo que saiu de nós com tanto afinco, horas de dedicação e experimento. aquilo cumpriu sua função (nem sempre de dimensão pública) e agora nós o retemos.

8. 

aquilo, se transformado em livro, ficará pela vida inteira no nosso encalço. algumas pessoas até falarão bem daquilo, de um alguém que não existe mais. sentiremos um desejo estranho de mostrar uma versão mais atual de nós, mas não saberemos muito bem onde essa tal versão está.

9.

aquele eu era até bonitinho, a gente pensa. sempre tem o que se possa aproveitar desse proto-eu, para além de suas falhas, seus exageros, suas manias. mas, como todo eu, é um proveito de âmbito particular. mesmo que cada obra tenha um eu, ela é composta por muito mais do que eu: obra que é obra é polifonia.

10.

construir obra demanda e não tem como ser simplificado. tem quem se dê conta antes, tem quem se dê conta depois. mas construir obra não é pra todo mundo — depende muito da natureza do chamado. tem gente que só escreve o que dá na telha ou o que o mercado manda. tem gente que tem pressa. tem gente que escreve em busca. e tem gente que nunca se contenta. 


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