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O desafio autoral

Hora de falarmos sobre o elefante branco no meio da sala.

Essa frase podia ser parte de uma conversa com a minha amiga Suemi Hamasaki que, de fato, tem um elefante branco no meio da sala.

O dilema autoral (ou a eterna busca por leitores) Mylle Silva
É um elefante de isopor, mas ainda é um elefante branco no meio da sala

Mas não é. Hoje é dia de falar sobre um assunto que incomoda os escritores mais do que qualquer elefante na sala: a falta de leitores.

Adoro escrever sobre criatividade, sobre publicações independentes, sobre projetos; vivo incentivando todo mundo a colocar suas ideias no mundo, mas a verdade é que todos nós, que amamos criar e publicar, estamos presos a mesma pergunta: quem vai ler?

Delírios I: basta ser bom

A lição mais dolorida que aprendi como escritora é que não importa o quanto o seu trabalho seja bom; se não houver pessoas interessadas em lê-lo, ele não será lido. Simples assim. Você pode passar anos estudando, se aprimorando, lapidando a sua produção, mas se ficar escondido em um canto do mundo, apenas produzindo, e de repente publicar um livro, ninguém vai se importar.

Ou seja, aquela conversinha mole de “basta fazer um bom trabalho e se empenhar todos os dias” é uma baboseira que nem os coaches devem mais acreditar.

Pode soar como uma grande obviedade o que estou falando, mas pense: não é essa a imagem que temos dos escritores, de que eles ficam escondidos nas profundezas de seus pensamentos até que, um belo dia, saem com um livro de sucesso em mãos?

Claro que é.

Delírios II: agentes literários

É comum as pessoas quererem mudar de assunto quando, no meio de alguma oficina, começo a falar sobre divulgação de trabalho e, não raro, algumas até expressam aquele velho desejo de encontrar um agente literário que faça todo esse trabalho chato para elas.

(Pausa para recomendar um episódio do podcast Boa noite Internet que trata exatamente esse assunto: sobre como o nosso trabalho não é o que chamamos de “trabalho”)

Seria um sonho mesmo poder dedicar todo o nosso tempo em leituras, escritas e reflexões, deixando a divulgação, a publicação, a administração financeira e o networking na mão de outra pessoa.

Se a questão fosse tão fácil de resolver — basta ter alguém cuidando da parte chata —, não haveria necessidade de cismar sobre isso. No entanto, na internet das coisas o desafio autoral é ainda maior.

E é aqui que minha revolta contra as redes sociais chega ao ápice.

“Quem é visto é lembrado”, um clichê, eu sei. Mas ele nunca esteve tão presente na vida de quem cria quanto na era pós-redes sociais. Hoje, se um escritor quiser ter ALGUMA chance de gerar interesse (do público e das editoras), ele precisa ter uma base de leitores em algum lugar da rede — de preferência, em algum lugar que seja possível ostentar um número para provar ao mundo que esses leitores EXISTEM.

Tem um livro só sobre isso, chamado Marketing para Escritores, que fala só sobre o mercado editorial brasileiro — que, aliás, mal podemos chamar de mercado, mas não vamos perder o foco. Uma das autoras do livro, a Laura Bacellar, entende do riscado: ela trabalha na área desde 1983 e já passou por várias casas editoriais brasileiras. Laura, inclusive, foi uma das curadoras do Jabuti 2020 na categoria Literatura Juvenil.

O livro — que eu inclusive recomendo, caso você esteja empenhado em encontrar os seus leitores —, sem querer, escancara a realidade do mercado editorial brasileiro: ele é tão pequeno e pobre (de dinheiro mesmo) que não justifica a figura do agente literário, tão presente em mercados como o norte-americano e o europeu. As poucas agências que existem — como a Villas-Boas & Moss — só se interessam por escritores de renome ou que já possuam uma base forte de leitores.

Nós, os independentes, somos uma grande massa de escritoras e escritores se debatendo em busca de leitores. Se você escreve ou mesmo produz algum conteúdo na internet, sabe bem do que estou falando. De alguma forma, estamos todos nos expondo todos os dias para tentar viralizar e ter nossos trabalhos “reconhecidos” — mesmo que o reconhecimento seja momentâneo pois, muitas vezes, isso já basta.

Delírios III: personas e nichos

Outra dica “de ouro” dos marketeiros para divulgar seu trabalho nas redes é escolher um nicho. Criar uma persona e produzir o que esse leitor imaginário gostaria de ler é uma entre tantas técnicas cansativas que podem ser aplicadas na divulgação de livros — mas será mesmo que podem ser aplicadas a todos? Sem dúvida um livro temático é mais fácil de apresentar nos milésimos de segundo de uma dedada na timeline do que um livro de contos sobre… a vida, o universo e tudo mais.

Tudo bem, talvez nenhum dos problemas que mencionei te incomode. Escolher um público, escrever para ele e se matar de divulgar é parte do jogo. No entanto, a grande questão é que esse sistema de agradar ao público só beneficia escritores que fazem trabalhos alinhados aos gostos das pessoas — ou seja, trabalhos mais comerciais do que artísticos; mais temáticos do que reflexivos.

Isso não significa que todas as narrativas de bruxos, vampiros ou jogos de sobrevivência cairão no gosto do público — mas o fato é que as chances disso acontecer são maiores do que um trabalho de vanguarda ou que tenha em sua essência a reflexão.

Delírios IV: basta focar

E aqui entro em outro buraco que a internet nos enfiou: elas nos tornou exageradamente técnicos. A artística plástica Fayga Ostrower, em seu livro Criatividade e Processos de Criação, já apontava esse caminho em 1983:

É bem verdade que, no nível da tecnologia moderna e das complexidades de nossa sociedade, exige-se dos indivíduos uma especialização extraordinária. Esta, todavia, pouco tem de imaginativo. De um modo geral restringe-se, praticamente em todos os setores de trabalho, a processos de adestramento técnico, ignorando no indivíduo a sensibilidade e a inteligência espontânea do seu fazer. Isso, absolutamente, não corresponde ao ser criativo.”

Segundo ela, a criatividade é o caminho para nos tirar, como sociedade, do tecnicismo — e eu não poderia concordar mais. No entanto, cada vez que buscamos respostas prontas para nossas perguntas no Google, mais longe ficamos da prática da imaginação e, consequentemente, da criatividade.

Escolher um nicho para ter uma base de leitores vai contra o processo criativo — isso porque a melhor maneira de desenvolver a criatividade é experimentando. No livro Como o Cérebro Cria, os autores falam que quanto mais áreas e maneiras diferentes exploramos, melhor desenvolvemos a nossa criatividade. Escrever de várias formas, sobre vários assuntos e para mídias diferentes — que é exatamente o que eu faço — é uma exploração da criatividade. No entanto, é quase impossível manter uma mesma base de leitores na internet para as várias facetas da produção.

É claro que ainda existe uma última questão sobre o desafio autoral: a falta de tempo para encontrarmos e lermos o que é produzido. Já pensou em quantos livros, contos, crônicas, histórias em quadrinhos, artigos, músicas, quadros, esculturas, filmes, séries… em todas as obras de arte estão sendo produzidas enquanto você lê essa frase? Sei que posso soar meio FOMO, mas a verdade é que nunca teremos tempo para apreciar tudo o que gostaríamos. 

Só de pensar nisso, posso declarar a batalha pela busca por leitores como perdida.

Delírios V: fórmulas mágicas 

Se você me perguntasse hoje como ter uma base de leitores, eu não saberia te responder. O Google tem várias respostas para te dar, mas nenhuma é 100% satisfatória — acredite, eu já pesquisei.

Só me resta finalizar essa cisma falando sobre dúvidas.

Não acredito em base de leitores, mas sim em encontro de mentes. A escrita é um encontro discursivo de ideias, não um amontoado de fãs — ao menos a escrita que me proponho a desenvolver. Meu trabalho é assumidamente autoral e nele exploro o “eu” simplesmente porque é o que curto fazer. Não fico pensando em personas, em planos, em marketings arrojados; apenas escrevo, publico e espero ser lida.

A relação que nós temos aqui, dentro da newsletter, é ouro pra mim. As cismas são o meu exercício de livre pensamento, de construção e partilha que me fazem acreditar na possibilidade de uma outra via de comunicação com os leitores. Essa é a minha voz; aqui sou livre.

Mas seria possível construir uma carreira baseada no encontro de mentes? Escrever até ressoar em alguém, mesmo sendo parte deste imenso emaranhado invisível de ideias no qual sou menor do que a menor parte de um átomo? 

Não sei. A mim cabe apenas apostar, sentar e escrever.


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