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O ofício da escrita não é uma escalada

O ofício da escrita não é uma escalada

A coragem de deixar a escrita mudar de um dia para o outro. Olhar para nossos registros (virtuais, físicos) e não esconder as mudanças sutis. Não esconder como nossos pensamentos divergem, como as palavras que escolhemos são iguais ou diferentes, como os mecanismos da linguagem e o tom de fala mudam. Permitir que a mutabilidade permeie nossos leitores assim como permeou o nosso dia a dia de escrita.

A sensação de quem acreditávamos ter sido e de quem fomos de verdade, no que ficou registrado. Nos reconhecermos e nos estranharmos na mesma medida, num aceitar de falhas, excessos e de que está tudo bem, tudo bem ser assim. Você não precisa ser diferente, se transmutar, se reinventar, se apagar para ser: já se é o que é. Melhorar alguma coisa do agora em diante? Claro que sim; mas abraçar também o que já melhorou.

É no tentar encaixar e nivelar que o eu acaba nos escapando.

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Tinha essa brincadeira, quando era pequena, de separar as cartas do baralho por naipe e depois arrumá-las em ordem crescente. Mas não é assim que se joga. É preciso embaralha-las (e bem) para deixar que o acaso decida sua ordem. É assim que devemos tratar a escrita, como um jogo de cartas embaralhadas, do qual tiramos uma nova e inesperada carta todo dia.

Tinha outra brincadeira, de digitar 1 + 1 na calculadora e ficar apertando = repetidas vezes, só pra ver até onde conseguia chegar. Sei lá até onde fui, mas devo ter passado de mil. Essa sim é uma forma de tratarmos a escrita, não pelo símbolo de =, mas pela repetição. Ninguém se livra da repetição quando o assunto é fazer algo bem feito.

Então antes era ruim, e daí? No mundo da escrita não existe nem antes nem depois, só o agora: o agora do leitor lendo. Para o texto sendo lido, não existe um antes de, depois de, existem só os olhos acariciando as palavras com seus micromovimentos.

Logo, tudo que é bom ou ruim é bom ou ruim agora.

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Olhar para trás e ver como era ruim é uma massagem para o ego, mas e quando nos enxergamos ruins agora? Quando a gente sabe que a história que estamos escrevendo não está saindo como gostaríamos?

Jogar tudo fora e começar de novo. Muitos fazem isso, está em sei lá quantos manuais-memórias-blogs. A primeira versão é ruim mesmo, apenas continue, continue a digitar, continue a digitar. Depois você senta, vê que ficou ruim mesmo, salva uma ou duas frases e começa tudo de novo.

Tentar uma nova abordagem. Mudar o tom do narrador, o ponto de vista, a linguagem, o formato, o local de trabalho, o lugar onde você está escrevendo (do computador para o caderno ou vice-versa para uma máquina de escrever), mudar o horário, a rotina, a quantidade de palavras, o seu nome artístico, sua certidão de nascimento, seu terapeuta. Mudar algum fator, não importando qual, desde que seja mudança.

Continuar como está sem intenção de jogar fora. Você apenas acha que está ruim, mas na verdade está muito bom. Sua mãe acha que você é genial e ela tem razão. Qualquer sensação de que está ruim é apenas uma crise química momentânea (TPM, baixa dopamina, falta de açúcar no sangue, et cetera), não se deixe abater por ela. Seja positivo e vibre na frequência da sua inspiração quântica. Tamo junto. 

BEEEEEEEHHH! Nenhuma resposta correta.

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E o contrário, então? Encontrar algo muito bom que você escreveu no passado — sem sequer se lembrar de onde tirou a ideia — e perceber que o tempo te fez piorar?

Todo escritor é um pedaço do texto enquanto o escreve, mas depois, sabe-se lá. Ideias se perdem, ideias mudam, valores chegam, outros envelhecem — tudo imprevisível na ordem do caos. Na papelada da escrita há sempre os textos-muito-bons-que-não-lembramos-quando-onde-porque-os-escrevemos. Esses são, sem dúvida, os mais assustadores, porque nos reconhecemos neles, mas não sabemos como repetí-los.

Um texto bom, escrito em circunstâncias recordáveis, é explicável — e isso dá certo controle ao autor. Mas um texto bom per se é livre para ser além-autoria, como ouvir a própria voz saindo da boca de um estranho. Lê-lo, relê-lo e ainda assim encará-lo como um membro estranho e invejável, único e inalcançável.

Junte isso a percepção de que você nunca mais chegará nem perto daquele resultado imaculado — e então tudo dará um nó.

Nunca mais é um pouco dramático, eu sei, mas é o sentimento que desponta ao se descobrir pior no presente. Deixe passar alguns dias de tentativas e erros para que os líquidos do corpo se reequilibrem antes de voltar a escrever algo que preste.

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Memória da escrita que se fez um dia: registro de pensamento, de habilidades, de ideias, de fruições. Todo texto escrito e guardado já esteve antes dentro de quem o escreveu. É um acordo silencioso, dizendo tudo bem ter sido assim ou ainda veja só o efeito que você conseguiu.

O ofício da escrita não é uma escalada. Só porque saiu um bom texto uma vez, não significa que todos os posteriores serão bons. E só porque um texto foi considerado bom em algum momento, não significa que continuará bom para sempre. A escrita, essa arte dual, necessita do outro para existir e perdurar.

Então, a única saída para o turbilhão de sustos, depreciações e julgamentos é a própria escrita. Seja ela boa ou ruim, com ou sem vontade, com ou sem objetivo, continuar a escrever é sempre a única saída viável. Em sua complexidade, sua leveza e seu dinamismo, o ato da escrita transforma quem o pratica, um pouquinho de cada vez.


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