Você é uma mulher e entra em um banheiro público feminino para trocar de roupa. O lugar é amplo, com janelas que deixam o sol do final da tarde entrar e portas de vidro jateado em cada um dos sanitários. Você abre a porta da primeira cabine e encontra um homem lá dentro. Você tenta a segunda porta e, mais uma vez, encontra um homem lá dentro. Você continua sua busca por um banheiro vazio para se trocar, mas sempre encontra um homem do outro lado da porta.
Quando olha para as pias, em frente às portas, vê que o banheiro está cheio de homens e se pergunta se por um acaso não teria entrado no banheiro errado. Confere o símbolo na porta de entrada (também de vidro jateado) e o ícone de uma pessoa com chiquinhas no cabelo e vestido. Você avista, então, uma porta de madeira, na cor marfim, vai até ela e adentra em um cômodo maior, com camas desarrumadas e coladas às paredes. Você se sente segura e começa a trocar de roupa até que dois homens saem do meio dos lençóis.
Eis o sonho que eu tive depois de escrever a Cisma abaixo.
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O pensamento acadêmico racional, ocidental e masculino não é para mim.
Os estudos literários sempre me causaram certo afastamento — e demorei alguns anos para compreender o porquê. Nesse tempo de explorações autodidáticas no campo das Letras e duas ou três incursões frustradas à academia, estava me negando o óbvio, como se não quisesse enxergar os fatos que há muito tempo se desenhavam nos caminhos que escolhi como artista.
Quando finalmente consegui articular a resposta para as minhas insatisfações, bastaram cinco minutos de pesquisa para descobrir que essas insatisfações não são nem novas, muito menos restritas a mim: elas são parte da Teoria Feminista.
A Teoria Feminista ganhou força após a Segunda Guerra Mundial e hoje já está na sua Terceira Onda, com enfoque na pluralidade de vozes do ser feminino. No campo da literatura, a Teoria Feminista proporcionou a revisão do cânone, a análise da representação da mulher nas obras literárias, a pluralidade das vozes e muitas outras conquistas.
No entanto, não podemos cair no erro de achar que tudo está resolvido. Deixando de lado as questões do próprio feminismo — porque existem múltiplos feminismos, pelo simples fato que diferentes mulheres vivem diferentes realidades — o campo da literatura está longe de ser inclusivo.
1. Os padrões estéticos foram determinados pelos homens (brancos e europeus)
Vou começar pelo óbvio, só para garantir: as mulheres foram silenciadas ao longo da história. Isso é um fato, quer você concorde ou não. A maior parte das mulheres, até o final do século XIX, não tinha direito a nada — de escolher, de ter posses, de questionar. Se eu, como mulher, posso escrever e publicar o que penso, é sob o custo de séculos de gerações de mulheres que tiveram que seguir as regras impostas pelos homens.
No entanto, não basta ter liberdade quando a estrutura montada antes dessa liberdade continua sendo replicada. Esse replicar de padrões construídos pelos homens é chamado de machismo estrutural.
Não adianta nada ser livre, poder estudar, votar, se expressar, ter uma base de apoio de amigos e familiares com quem possamos conversar sobre as questões do feminismo quando os padrões replicados pela sociedade são machistas. Em outras palavras, mesmo que a situação individual de uma mulher seja boa e equilibrada, ela não pode ser usada como parâmetro para como a estrutura da sociedade trata todas as mulheres.
Bem, depois de toda essa palestrinha, voltemos aos estudos literários. Como estamos em um país sulamericano, é normal (mesmo que eu não concorde) que os cursos superiores de Letras tenham suas linhas de pesquisa voltadas para as estéticas europeias. Quando falamos de estéticas europeias, nós estamos, automaticamente, replicando padrões determinados por essas estéticas.
O meu incômodo é que essas estéticas, extensamente estudadas e replicadas, foram consagradas por homens. Homens, em muitos casos, ricos, brancos e com muito tempo livre para criar suas histórias ou criticar as histórias dos outros.
E que fique claro: o problema não é eles serem homens, nem ricos e nem brancos; o problema é só estudarmos as teorias deles. O problema é a falta de pluralidade de pensamento.
Aqui você pode me questionar: mas eu não quero seguir a vida acadêmica, então não importa. Bem, se você quer ganhar determinados prêmios literários, talvez isso importe sim.
Dependendo de qual é o seu objetivo com a escrita, você se verá impelida ou impelido a embarcar na vida acadêmica. No entanto, se seu objetivo for ganhar prêmios maiores, como os promovidos por bibliotecas ou pelo SESC, saiba que o seu trabalho será avaliado por pessoas que passaram pela academia e que, provavelmente, estão em busca de trabalhos que se enquadrem nas estéticas replicadas dentro dos cursos de Letras.
Ou seja, nas estéticas consagradas por homens brancos, ricos e europeus.
Você pode achar a minha afirmação subjetiva (afinal, não tenho como adivinhar o que um avaliador de prêmio está buscando), mas a verdade é que estou sendo bem objetiva.
A minha objetividade está relacionada a porcentagem de autoras que são estudadas e publicadas no Brasil.
2. Pode não parecer, mas os homens ainda dominam a literatura
Acho lindo e necessário usar a hashtag #leiamulheres, falar sobre livros escritos por mulheres, dizer que estamos lendo mais mulheres, mas é preciso pensar fora da bolha das nossas redes sociais. O fato é que, mesmo ante a aparente presença de escritoras, a maioria dos livros publicados, usados como referência e estudados continua sendo de homens.
Ao mapear as publicações das editoras Rocco, Record e Companhia das Letras em três épocas diferentes (1965-1979, 1990-2004, 2005-2014), a pesquisadora Regina Dalcastagnè identificou que apenas 17,4% dos livros foram escritos por autoras. Levando em consideração que essas três editoras publicam para vender, é possível concluir que se a maioria dos livros publicados são escritos por homens, é isso que os leitores querem.
Ou melhor, as leitoras. A edição de 2015 da pesquisa Retratos da Literatura no Brasil revelou que 59 em cada 100 leitores no Brasil são mulheres.
O padrão se repete no meio acadêmico. Em 2019, 72% dos artigos científicos publicados foram assinados por mulheres. No entanto, quando se trata de pesquisas realizadas sobre mulheres e temas femininos, as taxas são baixas — ao menos nos estudos disponíveis sobre o tema, que são esparsos e localizados.
Agora, para ir além da desigualdade escancarada e já difundida (basta Googlear para dar de cara com notícias e estudos sobre a disparidade entre as oportunidades para homens e mulheres), quero resgatar uma reflexão do maravilhoso ensaio Um teto todo seu, da Virginia Woolf.
3. As mulheres continuam sendo inferiores aos homens
Quando Virginia Woolf constrói seu argumento afirmando que os homens usam as mulheres para se sentirem superiores, me encontro com uma daquelas descobertas íntimas e latentes, como quem acorda de mansinho: estamos todos replicando o que os homens disseram para nós que é literatura.
Mais uma vez, não é um exagero. Os teóricos que estudamos são homens, os cânones que admiramos e imitamos são homens, as ideias sobre como as narrativas funcionam são de homens.
O que nós chamamos de arte, o que nós estudamos, imitamos e replicamos como literatura foi validado e transmitido ao longo das gerações por homens — e, apesar dessa minha afirmação não resolver a questão, ela identifica e nomeia o meu incômodo.
E se Shakespeare tivesse uma irmã?, Woolf pergunta no seu ensaio.
E se as mulheres, ao longo da história, tivessem tido suas ideias e sua capacidade intelectual respeitadas como tiveram os homens?
O título dessa Cisma é uma homenagem a outro grande livro de ensaios, Os homens explicam tudo para mim, escrito pela Rebecca Solnit. No ensaio homônimo, Solnit conta uma situação que seria cômica se não fosse trágica: em uma conversa durante um jantar, um homem explica para a autora os argumentos utilizados em um texto que ela mesma escreveu.
Depois de passar por essa situação e refletir sobre ela através do ensaio, Rebecca cunhou o termo mansplaning.
4. O trabalho está apenas começando
Sem dúvida a situação das mulheres melhorou muito no último século, mas é fácil perceber que estamos apenas no começo do trabalho. Muitas de nossas ações continuam replicando os padrões do patriarcado e ainda enfrentaremos situações em que temos que aceitar certas convenções machistas para poder participar da sociedade.
Sendo assim, ao invés de tentar se opor a tudo e todos, a saída é ter escolhas conscientes e saber quando agir para tornar a relação entre os gêneros mais igualitária.
Talvez seja através de atitudes pequenas, como escrever da maneira como você gosta de escrever, e não para imitar esse ou aquele cânone. Talvez seja um tema de pesquisa (acadêmico ou pessoal) para compartilhá-lo com o mundo. Talvez seja, além de ler mais mulheres, ter os livros escritos por elas como referências primárias, assim como citamos tantos livros escritos por homens.
E, para finalizar, quero dizer que se a frieza do mundo te incomoda, você não está sozinha nem sozinho. Falar sobre os feminismos não se trata de querer que as vozes femininas prevaleçam sobre as masculinas, mas sim que nós possamos conviver em polifonia, em equilíbrio com a pluralidade e a riqueza que o mundo nos oferece.
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Você é uma mulher e está participando de uma oficina de criação literária. 95% das referências citadas pelo instrutor são homens — e os 5% restantes são de apenas uma autora: Clarice Lispector. Você não se identifica com aqueles autores, menos ainda com as representações do feminino por eles disseminadas. Você se pergunta se é essa mesma a literatura que você está disposta a produzir para ser aceita no meio.
Eis a realidade da nossa produção literária. Enquanto referências de mulheres, homens e pessoas não-binárias não forem citadas e lidas de maneira igualitária, estaremos muito longe da tão sonhada pluralidade.