por Patricia Dias
Há pouco tempo incluí na minha rotina doses de poesia; com sorte, um ou dois poemas ao longo do dia. Leio alguns versos logo cedo, antes que a maratona do dia me engula; antes mesmo daquela passagem de olho (nada rápida) pelas notificações e pelo Instagram. Apenas alguns versos, degustados junto de um café fresquinho. A cabeça naquele estado meio hipnótico — não sabe bem se é sonho ou vigília — e a poesia penetrando até se espalhar por todo o corpo. Pode ser que seja só o efeito da cafeína, mas gosto de pensar que é a poesia que me energiza e me prepara para encarar a nova jornada.
No momento, quem me faz companhia pelas manhãs é Fernando Pessoa. Nessa leitura sem pressa, me permito ler uma, duas e até três vezes o mesmo trecho, seja porque não entendi algo (o que acontece com frequência), ou porque achei bonito-intenso-verdadeiro. Tive fases de ficar presa ao sentido do que lia, provavelmente herança dos terríveis questionários para avaliação da leitura. À medida que abandonei a leitura racional e inquisidora, descobri o caminho para a poesia. Em Pessoa — poeta e oráculo — o encontro reforça tal pensamento: “o único sentido íntimo das cousas / é elas não terem sentido íntimo nenhum”.
Ao reler meus trechos favoritos, vivo a ilusão de tomar posse daqueles versos; de torná-los um pouco meus, de habitá-los. Por mais estranho que pareça, dadas as nossas diferenças, nos versos de Pessoa me sinto em casa. Compartilho de suas angústias e inquietações, e do tom de melancolia que perpassa seus poemas. O avançar das páginas me comove, sinto desde já uma tristeza, uma saudade antecipada das minhas manhãs com o poeta (e seus múltiplos) para quem “toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real”.
Em prol da saúde, reduzi o consumo de café e aumentei o de chás. A marca que virou minha favorita traz pequenas frases acompanhando os saquinhos, oferecendo um duplo aconchego — a bebida quente e as palavras. Até posso prescindir do contato, mas nunca das palavras, visto que só é possível sobreviver a mim mesma, e a realidade atual, pelas palavras. No bonito Não risque essa palavra, Ana Martins Marques explora a potência desse encontro: “às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra / apenas quando a encontro / ela se parece com um buraco/ cheio de silêncio”.
Em um dos meus trechos favoritos do Livro dos Abraços, Galeano narra a experiência de um menino vendo o mar pela primeira vez. Mudo frente a tanta beleza, ele pede ao pai: “Me ajuda a olhar!” Diante do que não entendemos, pedimos emprestadas as palavras alheias — estrofes de poemas e trechos em prosa — que poderão preencher as frestas, povoar nossos buracos e silêncios. Palavras-imagens que irão tecer novas redes de significados ao se juntarem às nossas próprias palavras, no contínuo exercício de construção e desconstrução interna.
Gosto da ideia de riscar palavras e de voltar a escrevê-las — subversão e reconstrução — brincadeira de criança que adquiriu novos sentidos. Aprendi a escavar em busca da palavra exata, pois desde que o esforço e coragem sejam legítimos, as palavras acabam vindo ao nosso encontro.
Tem palavra que é silêncio para que se possa construir o próprio sentido, não aquele sentido padrão e inflexível, mas o sentido que melhor nos cabe. Mesmo que a palavra pareça algo fugaz, feito folha seca solta ao vento, algumas podem ser determinantes e nos acompanhar por toda uma vida.
Estejamos, pois, mais rente às palavras, desfrutando a gratuidade do encontro. Para começar, uma dose de poesia a cada manhã.