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Por uma vida com mais matchs literários

por Patricia Dias

Final de ano é época dos tradicionais balanços e retrospectivas, e eu adoraria saber: qual livro-autor-gênero te tocou fundo? Qual obra te tirou da zona de conforto e ampliou seu olhar? 

Antes mesmo que eu finalizasse a coluna, recebi um e-mail como resposta a um dos meus textos, em que a leitora dividia comigo sua experiência de leitura de Jane Eyre — um dos meus livros queridinhos. Compartilho aqui suas palavras fervorosas “nunca mais vou ser a mesma depois de ter lido Jane Eyre”, “não consigo mais ser eu, sem ter uma parte da Jane em mim”, “meu livro preferido ou meu livro pra vida”.

Fiquei emocionada, claro! Lembrei da minha própria experiência de leitura (em 2015, se não me falha a memória), rememorei os trechos marcantes, e que, incrivelmente voltaram a minha mente, acompanhados de sensações físicas, as mesmas experimentadas na época. As imagens construídas na minha imaginação de leitora, passando como um filminho na minha cabeça.

Me encanta perceber (e vivenciar) uma vez mais esses pequenos milagres literários. Fagulhas que mantêm aceso nosso amor pelos livros e pela leitura.

Emoções a parte, fica a pergunta: como uma obra escrita há mais de cento e setenta anos tem o poder de tocar tão profundamente leitores do nosso tempo? É possível teorizar muito a respeito, porém, nada é conclusivo. Como alguém apaixonada pelos livros, prefiro acreditar nos os mistérios que envolvem a relação livro-leitor, como se alguns livros fossem dotados de uma espécie de imã, capaz de atrair o leitor certo, promovendo um encaixe perfeito. O leitor escolhido, então, desfrutaria de uma sensação especial de pertencimento e repetiria em voz alta: “encontrei meu número”. Não seria mesmo um pequeno milagre encontrar, entre os milhares de livros já escritos, aquele que melhor me cabe, me veste, me abriga? “O meu livro pra vida”, amparo e conforto em formato de papel ou de leitor digital.

Não entendam a questão de “leitor certo” como algum tipo de classificação — livro bom x livro ruim, cânone x best-sellers, nada disso. Trata-se muito mais de uma questão de timing perfeito do que qualidade literária. Quando “dá match” é porque o livro chega na hora exata que deveria chegar, para aquele sujeito e para o que ele está vivendo no momento.

Por isso mesmo, nem todo Livro Favorito da Vida é livro nobel, mas é o livro que fez parte de um momento importante, que permitiu algum tipo de insight, que foi segurança durante a travessia de águas turbulentas. E pelo mesmo motivo, estimado leitor, não adianta tentar convencer todo mundo a ler seus livros-favoritos-da-vida, ou pior, ficar ofendido com as opiniões contrárias. Embora pareça uma afronta ou ataque pessoal, é importante lembrar que é direito irrevogável de todo o leitor eleger seus preferidos, fazendo uso da liberdade de gostar ou desgostar.

Para quem fica arrasado com as paixões-literárias-não-correspondidas, um consolo: as escolhas não são definitivas. Um livro que não agradou no passado pode, em um outro momento de vida, receber uma segunda chance e ser resgatado do limbo. Toda a releitura é uma nova leitura, porque aquele leitor já não existe mais.

 O “match literário” está além da nossa compreensão, uma curadoria sensível ajuda muito, mas não podemos ver o que se passa dentro do Outro. A gente pode recomendar, postar nas redes sociais, fazer campanha — toda campanha em prol da leitura é válida —, mas o encaixe perfeito está além das nossas forças bibliofanáticas.

Na realidade, ao tentar influenciar demais ou modificar a opinião do outro, podemos perder uma das coisas mais belas na leitura: a gratuidade. De lugar de encantamento e brilho no olho, passamos a ocupar o lugar já tão desgastado das leituras obrigatórias. É preciso que se ofereça a leitura como um presente, um doar-se em prol de uma nova relação leitor-livro, sem cobranças, apenas pelo desejo de partilhar.

E justamente por essa união-perfeita livro-leitor ser um fenômeno raro, é que o encontro entre leitores de um mesmo livro favorito torna-se um grande acontecimento, como se uma espécie de magia especial os unisse, tornando-os guardiões dos personagens e da narrativa, membros autonomeados de uma mesma confraria ficcional.

O sentimento é de familiaridade, como se ao saber qual o livro favorito de uma pessoa, pudéssemos conhecê-la em detalhes. Estabelecer uma relação de intimidade, oferecendo algo de si, em um processo que é ao mesmo tempo singular e coletivo.

Na experiência com grupos de leitura e clube do livro, observo com frequência essas relações de amor e ódio pelos livros. Gosto de ouvir as justificativas, dou risada, às vezes passo raiva, mas sobretudo percebo minha capacidade de compreensão sendo ampliada infinitamente — seja a compreensão sobre o texto literário em questão ou meu entendimento sobre literatura e comportamento humano. O ato de gostar ou desgostar de um livro fala muito mais sobre o leitor do que sobre o texto ficcional.

Poderia terminar esse texto citando os meus livros favoritos da vida, ou os livros mais marcantes do ano, puxando o fio que deixei solto lá no início, mas apesar de ser uma pessoa das listas, me falta objetividade — e também coragem para elencar meus favoritos, sabendo que fatalmente deixarei livros-match-maravilhosos de fora.

Para não fugir totalmente da proposta, compartilho com vocês uma das melhores descobertas de 2021: a Literatura Indígena. Eu não imaginava o quanto poderia ser tocada pelas palavras dos povos originários. Quanta sabedoria, beleza e poesia nas narrativas de Daniel Munduruku, Eliane Potiguar, Ailton Krenak, Julie Dorrico, Marcia Kambeba, e tantos outros. Meu desejo de “adiar o fim do mundo” encontrou pouso nessas vozes.


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