Castro Alves está entre as minhas primeiras referências literárias da vida. Lembrou-me de ir a casa de uma amiga que tinha uma coleção de livros com clássicos da literatura brasileira e, sempre que podia, relia alguns poemas.
Assim, por muitos anos — e talvez ainda hoje — os poemas que escrevo tem ecos de O Laço de Fita e O Gondoleiro do Amor, dois dos meus favoritos na adolescência. Mas, como acontece com frequência, tentei me afastar dessas referências para sair em busca de outras — até pegar a antologia A voz da esperança (que você pode baixar gratuitamente na Amazon) para ler.
A essa altura, eu já estava a par do Castro Alves abolicionista e de como O Navio Negreiro foi um divisor de águas na história da literatura brasileira — e talvez por isso mesmo esse não tenha sido o poema que mais me chamou a atenção.
Os poemas de Castro Alves, com seu ritmo característico, são gostosos de ler em voz alta, quando o som diz mais do que o sentido das palavras. Talvez você não entenda alguns termos do século XIX, mas basta ler os versos em voz alta para entender o que está sendo dito.
Talvez seja nesses sentidos ocultos que minha admiração por Castro Alves tenha se mantido intacta ao longo da vida. Portanto, com o coração já menos afoito do que na adolescência, o poema que mais falou comigo nessa (re)leitura foi A Queimada.
Em um tempo pré-imagens-em-abundância, as palavras precisavam dar conta das descrições como fotografias. Ao meu ver, o poema A Queimada é um ótimo exemplo de como técnica de escrita e sensibilidade do poeta se encontram para imortalizar um acontecimento.
A princípio, me perguntei qual floresta pegando fogo Castro Alves teria presenciado, mas logo percebi que isso pouco importava — a queimada dele não era diferente de nenhuma outra, ocorrida antes ou depois de sua existência aqui na Terra — tal a força do seu poema.
Leia por você mesmo.
A Queimada, de Castro Alves
MEU NOBRE perdigueiro! vem comigo. Vamos a sós, meu corajoso amigo, Pelos ermos vagar! Vamos lá dos gerais, que o vento açoita, Dos verdes capinais n'agreste moita A perdiz levantar!... Mas não!... Pousa a cabeça em meus joelhos... Aqui, meu cão!... Já de listrões vermelhos O céu se iluminou. Eis súbito da barra do ocidente, Doudo, rubro, veloz, incandescente, O incêndio que acordou! A floresta rugindo as comas curva... As asas foscas o gavião recurva, Espantado a gritar. O estampido estupendo das queimadas Se enrola de quebradas em quebradas, Galopando no ar. E a chama lavra qual jibóia informe, Que, no espaço vibrando a cauda enorme, Ferra os dentes no chão... Nas rubras roscas estortega as matas..., Que espadanam o sangue das cascatas Do roto coração!... O incêndio — leão ruivo, ensangüentado, A juba, a crina atira desgrenhado Aos pampeiros dos céus!... Travou-se o pugilato... e o cedro tomba... Queimado..., retorcendo na hecatomba Os braços para Deus. A queimada! A queimada é uma fornalha! A irara — pula; o cascavel — chocalha... Raiva, espuma o tapir! ...E às vezes sobre o cume de um rochedo A corça e o tigre — náufragos do medo — Vão trêmulos se unir! Então passa-se ali um drama augusto... N'último ramo do pau-d'arco adusto O jaguar se abrigou... Mas rubro é o céu... Recresce o fogo em mares... E após... tombam as selvas seculares... E tudo se acabou!...
(clique aqui para acessar um glossário do poema)
“Uma fotografia”, foi o que pensei, “uma fotografia da destruição”.
Sei que muitas pessoas discordam de mim. Em tempos com informações disponíveis em fotos, vídeos e textos infinitos na internet, todo esse lirismo seria dispensável. Em teoria, a visão de um poeta — que, além de ser individual é questionável — não adiciona nada à imagem mental que temos de uma queimada, mesmo sem termos presenciado nenhuma.
No entanto, o que falta ao mundo tecnicista — e a literatura provém de sobra — é a alteridade: a sensação de experienciar tudo o que o eu-lírico do poema descreve, como se o leitor estivesse no lugar dele.
Artigos, notícias, pesquisas e quaisquer outras informações são leituras necessárias e válidas, mas não nos levam, como leitores, à alteridade. Podemos rir, chorar, aprender e transformar essas leituras em conhecimento, só que isso é o máximo que leituras técnicas podem gerar. O fator humano, esse sim, é encontrado em sua melhor forma no equilíbrio da técnica de escrita com o tempero das emoções.
É claro que, por si só, a literatura não muda o mundo. Agora, é inegável que um único poema seja capaz de mudar a pessoa que o lê — e, se um desses leitores fizer algo para mudar o mundo, a literatura se torna um condutor da mudança.
Para finalizar, um desejo (atrasado) para 2022: que a cada dia mais pessoas possam aguçar seus sentidos e revisar seus valores através da literatura.
P.S.: Sempre que termino de ler algum livro, procuro um pouquinho sobre a vida de seu autor — e fiquei surpresa ao descobrir que Castro Alves faleceu aos 24 anos. Caso você, assim como eu, goste de futricar na vida dos escritores, deixo o link para Wikipedia dele e também um filme nacional que conta a história do poeta.