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Se você mostrar o seu, eu mostro o meu

Assim como os livros e a escrita, a internet sempre foi um habitat natural para mim. Mas, ao contrário da segurança das páginas encadernadas em códice, o código mudou mais rápido do que pude acompanhar. 

Antes de ter um computador, eu tive um teclado. Nos anos de 1990, apesar da pouca noção de como aquele objeto cheio de letrinhas transformaria meus socos (sempre fui meio violenta ao digitar) em textos, “escrevia” com ele por horas, brincando de ser escritora.

Como já mencionei antes, vi algo promissor na internet: um espaço livre para tornar público tudo o que eu escrevia. Desde os 15 anos, faço e desfaço projetos — em sua maioria, sites — para os quais produzo conteúdos variados, desde poemas até notícias da Curitiba japonesa.

O ato de escrever pressupõe um querer ser lido. Ter a preocupação de construir um texto com forma e conteúdo já é a prova do desejo de encontrar leitores. No entanto, a forma nunca esteve tão acima do conteúdo quanto na internet barulhenta pós-redes sociais.

Minha busca por leitores fez com que otimização de sites, marketing de conteúdo, impulsionamentos, base de fãs, resultados orgânicos e tantos outros termos se tornassem rotina de estudo. O simples escrever e publicar passou a perder sentido à medida que as redes sociais nos transformavam em vozes digitais fantasmagóricas.

De modo geral, pouco importa o que você faz, mas sim qual é o número que te representa. No enxame de informações apontado pelo filósofo Byung-chul Han, há uma ironia categórica: ao mesmo tempo que as redes sociais são ambientes digitais narcisistas, espaços exclusivos do “eu”, as histórias individuais pouco importam. Viraliza quem tem mais curtidas — ou seja, quem consegue atingir mais pessoas e se sobressair em número. 

A batalha por um lugar no algoritmo é dura, mas não menos recompensadora. Em troca, recebemos reconhecimento em forma de dopamina a cada curtida, comentário elogioso (mesmo que seja apenas uma carinha envolta por corações) ou mensagem de incentivo. Estamos viciados nisso e queremos mais, não medindo esforços para descobrir como agarrar novas recompensas.

Eu mesma já fui viciada em redes sociais e vi meu tempo se esvaindo entre calendários de postagens, timelines infinitas e conversas com pessoas desconhecidas só para agradar ao deus algoritmo. Quando percebi, não só alcançar um suposto público havia se tornado uma obsessão, como minhas necessidades haviam sido transformadas drasticamente, a ponto de ter comprado cursos de Insta marketing em busca de soluções para problemas que não eram, de fato, meus. 

(Aliás, eu nunca terminei de ver os cursos)

Mudanças de comportamento com o intuito de gerar novas necessidades são estratégias das redes sociais para nos viciar nelas, como demonstra muito bem o documentário O Dilema das Redes. Nele, os próprios criadores das social media contam como utilizaram conceitos da psicologia para nos manter dentro de mundinhos confortáveis e criar novas demandas em nossas vidas.

Quando, de repente, o Instagram me perguntou se eu queria mostrar as curtidas que recebi para poder ver as curtidas recebidas pelos outros — algo que o Orkut já implementou em 2005 — percebi que receber ou não curtidas deixou de ser uma das prioridades do meu dia. Eu estava, enfim, desintoxicada.

No entanto, ser um número no mundo digital envolve muito mais do que seguidores, curtidas e alcances. Se os seus números forem expressivos, talvez o deus algoritmo te ajude a pagar suas contas. A questão, no entanto, é o investimento que estamos fazendo para pagar nossos boletos — e quanto as empresas de tecnologia estão lucrando conosco.

Jaron Lenier, um dos precursores da realidade virtual e famoso opositor das redes sociais, lembra que “o principal processo que leva as redes sociais a ganharem dinheiro, embora também cause danos à sociedade, é a modificação de comportamento”. O ato de sair em busca de reconhecimento ou dinheiro através das redes faz com que cada um de nós seja, ao mesmo tempo, um produto e um explorador da nossa própria força de trabalho.

Quem entende muito bem sobre a ideia contemporânea de explorador e explorado é, mais uma vez, Byung-chul Han. Ainda No Enxame, ele afirma que, apesar de sermos livres para trabalharmos quando quisermos, a era digital acabou com a divisão entre trabalho e ócio ao nos tornar capazes de carregar nossas ferramentas de trabalho no bolso. Desta forma, todo o ócio continua sendo tempo de trabalho, só que desacelerado, durante o qual nos exploramos sem hesitar.

Há pouco mais de um mês, passei por momentos em que, mesmo falando com todas as faculdades mentais em pleno funcionamento, eu era incapaz de compreender as palavras que emitia. De repente, meu cérebro ficava “em branco” — sinal do preço cobrado por toda a informação com a qual estava lidando.

A SFI (Síndrome da Fadiga de Informação) foi apontada em 1996 pelo psicólogo britânico David Lewis, que já identificou, à época, as consequências de se lidar com grandes volumes de informação. Hoje todos nós, em nossa bela sociedade global, estamos sujeitos a crises de SFI, cujo principal sintoma é o estupor das capacidades analíticas — a incapacidade de discernir o que é essencial do que não o é.

Há pelo menos dois anos me pergunto se devo continuar escrevendo em um mundo já atolado de informações. Minha visão romântica da internet vem se desmanchando na mesma medida em que as pessoas se digladiam por atenção. Deixando de lado a questão do valor do texto em si (que é puramente egocêntrica), colocar mais conteúdo no mundo é contribuir para o afogamento de informação no qual nos encontramos.

Mas então o que fazer com o sonho de ser escritora, que dá sentido à minha vida?

É preciso lembrar que só sou capaz de dizer que “nasci escritora” porque vivo em um mundo em que o livro, a literatura e, principalmente, a escrita já foram inventados. Portanto, não posso ignorar que a criação de uma necessidade hoje — como as redes sociais — pode se tornar a vontade de potência de alguém no futuro. 

Assim como as redes sociais, a escrita também enfrentou opositores quando foi inventada. Os argumentos, inclusive, eram bem parecidos com alguns usados hoje — mas esse é um assunto para outro momento. 

Por ora, voltemos ao nosso impasse. Escrever sem pensar na recompensa, em um mundo que está sedento para nos dar um biscoito, talvez seja a melhor — e mais complexa — opção. Fugir do imediatismo, construindo um trabalho maior, é uma das únicas saídas para quem deseja ser lido e, verdadeiramente, reconhecido.


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