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transresíduos

Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.

Fernando Pessoa

Abrindo a janela dois patinhos foram passear além das montanhas para brincar a mamãe gritou ulêlê ulálálá é a dança do ET que veio abalar xícara de café na mesa de quando em sempre trombando com um monstro naquele cenário árido naquele cenário úmido naquele cenário retrô urbe. Tem cachorro latindo tem martelinho de ouro tem até sol. A pomba pousou no reflexo do fio, que balança em posse do vento de encher cabeças vazias de imagens. Nada de voltar aquela música do Placebo, que não era Pure Morning mas devia ser do mesmo álbum. As pessoas que falaram “ouça Placebo“ perdidas em um passado distante (e não há Facebook que as recupere). ______ summer rain, nothing ever changes e a primeira palavra do verso escapa no daí vem um e corre pra atravessar a rua, né?, estapeado da calçada. Melhor não pesquisar, martelinho de ouro, melhor não pesquisar. Nem levante. Pegar o celular agora é abismo, você sabe que não tem volta. É muita memória empilhada por lá, muita memória sobreposta. Rachmaninov no domingo, só pra ouvir aquela música. Op. 2, deve ser, pra piano. Expectativa de choro a preços populares e sem cadeiras numeradas. Da árvore para o fio, do fio para a árvore. Nada discreta a pomba batendo asas e ela praticamente não sai do chão. O beija-flor de ontem (pequenininho, feito borboleta). A sabiá (em slow motion voando pro ninho) de outubro. Os ovos ficaram para trás, os filhotinhos. O quero-quero comendo ovo de pomba na janela de 2020. Socorro, 2020 foi ontem, num espanto de como uma pomba sozinha é capaz de balançar tanto o fio. Aquela parte bem russa da Op. 2, inescrevível. Ouvindo música clássica por causa de anime, coisa de 2006. A cena da Nodame tocando Rachmaninov com o Chiaki e como a gente partilhava daquilo e como aquilo se dissolveu. Como hoje não faz nem um décimo do sentido que já fez. Como eles estão? Onde eles estão? Talvez mudar essa estante de lugar, empurrar pro lado (ainda bem, um rodo). Os ingressos ficam pra depois. Pelo YouTube já dá pra chorar um pouquinho com o pianista cego. Era só um anime. Era só o que a gente fazia há uns vinte anos. Coisa estranhíssima essa de conhecer alguém metade da vida. Esgotados. É outro dia e outra pomba sacode outro fio. Demoliram a casinha, só ficou o filme. Os filhotinhos devem ter nascido devem ter crescido devem ter fugido. Os entulhos daquilo que a gente andava todo dia dentro. 


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