Lambrequim logo newsletter

a newsletter de cultura e tecnologia da Têmpora Criativa

Um passeio pelo processo composicional da música Sujimichi

por Cássio Menin

No final de maio deste ano, recebi a encomenda de uma composição musical para a divulgação da história em quadrinhos A Samurai: Sujimichi,de Mylle Silva. 

O objetivo do pedido era confeccionar uma nova música ou tema que explorasse, de maneira satisfatória, a atmosfera narrativa da HQ. Após o término da obra e refletindo sobre os processos composicionais utilizados, encontrei a necessidade de escrever este memorial composicional

As reflexões que seguem são análises descritivas que dizem respeito à obra, bem como destacam algumas técnicas e estratégias utilizadas no processo e que podem servir como sugestões para o processo criativo em diferentes áreas do conhecimento. 

Este texto, de forma alguma, tem como objetivo realizar uma análise musical minuciosa. Os exemplos apresentados servem apenas para ilustrar e enriquecer o que está sendo exposto. Entretanto, caso você queira saber mais sobre composição musical, ou mesmo encomendar alguma obra musical, basta entrar em contato pelo nosso e-mail.

Sujimichi, música escrita por Cássio Menin e tema da HQ A Samurai: Sujimichi

Primeira etapa do processo composicional

O processo criativo composicional foi dividido em etapas e fases. A primeira etapa foi dividida em 3 fases, da seguinte forma:

A primeira fase na confecção da obra foi ler a primeira versão digital (quase) completa. Embora eu já tivesse conhecimento prévio da história e dos quadrinhos anteriores, a leitura da nova HQ foi muito importante para: 

a) Compreender a história em todos os seus aspectos narrativos e; 

b) Visualizar, de forma concreta, cada uma das cenas sob a ótica dos desenhistas que fazem parte do projeto. 

Páginas do roteiro da HQ A Samurai:Sujimichi, de Mylle Silva

A segunda fase foi escutar as palavras da autora sobre o que ela esperava da obra que havia encomendado. Portanto, fiz um levantamento prévio de informações como, por exemplo, sobre os fins de utilização da obra, bem como minutagem prevista. 

Dando início, desta forma, a terceira fase, que se consistiu basicamente em um processo de escuta ativa e analítica da obra A Samurai, também de minha autoria e que já havia servido como trilha sonora para projetos anteriores da autora com o mesmo propósito. 

Após a escuta, decidi que não iria reutilizar nada da obra em questão. Tratei de descartar os motivos, materiais, instrumentação e qualquer outra coisa que pudesse influenciar a nova obra encomendada — ou seja, decidi começar do zero. 

Segunda etapa do processo composicional

A segunda etapa tratou especificamente da seleção e análise de materiais compositivos e foi dividida em duas fases: uma tratando do material melódico-harmônico e outra do material rítmico. 

A única questão resolvida até então era a sonoridade que a música deveria ter. Portanto, a escolha dos materiais foi direcionada neste sentido. Uma música modal, com elementos que, de alguma maneira, remetessem à música étnica que figura em nosso imaginário como japonesa. 

Na primeira fase, baseado nas informações coletadas junto à autora, escolhi como material melódico as tradicionalmente conhecidas escalas japonesas (que, em sua maioria, são escalas pentatônicas). Na obra em questão, utilizei as seguintes escalas pentatônicas: 

a) Akebono, também chamada de Kumoi, é uma Pentatônica Dórica ou podemos pensar como 3º Modo da escala Kokin Joshi; 

b) Yo conhecida no Ocidente como 2º Modo da pentatônica maior. 

Escalas Akebono e Yo

Outra “escala japonesa” utilizada foi a Hirajoshi. Deixo entre aspas porque a descaracterizei quando fiz o acréscimo de uma nota a esta escala — uma 7ª menor — transformando-a em uma escala hexafônica (basicamente uma escala no Modo Eólio sem a 4ª Justa). 

Com o material definido, realizei a análise deste baseado na teoria de polarização acústica ou harmônica Edmond Costère (para saber mais sobre a teoria, leia este livro). 

A definição de uma fundamental — a saber, a nota Ré — se deu após a análise do material melódico, dando início à fase dois da segunda etapa. 

Nesta fase verifiquei que, em sua imensa maioria, as músicas que possuem o mesmo objetivo da obra encomendada são compostas em compasso ternário. À vista disso, toda a música composta é ternária, com exceção do compasso em que ouvimos o Gongo, que é binário. 

Por conseguinte, todos os motivos rítmicos utilizados buscam remeter ao já citado imaginário musical. Utilizei também um ostinato, um motivo rítmico-melódico que se repete ao longo da música logo após o Gongo.   

Células rítmicas do Ostinato realizadas pelo Cello e a Viola

Terceira etapa do processo composicional

A terceira etapa diz respeito a seleção de instrumentos e questões relacionadas à orquestração musical, que podemos considerar como um único processo, visto que a escolha e o uso de cada instrumento diz respeito unicamente a seu caráter timbrístico. 

Na orquestração utilizei um Trio de cordas (um Violoncelo, um Violino e uma Viola, uma Harpa, um Shakuhachi (uma das milhares de espécies de flauta feitas com bambu), um Contrafagote e três percussões: um Gongo e dois Tambores de Taiko

A obra, em si, pode ser dividida em três momentos específicos. O primeiro deles, de 0’00’’ até aprox. 0’19’’, apresenta o Tema 1 no Contrafagote que é acompanhado pelas cordas em pizzicato; em seguida pela Harpa, com arpejos dos acordes derivados da escala hexafônica utilizada. 

Aplicando os conceitos de polarização de Costère, busquei construir uma melodia que remetesse a temas comumente relacionados a conceitos de tristeza, perda, ausência, dor, portanto uma espécie de Réquiem, que finaliza com a pontuação do Gongo.

Tema 1

No segundo momento, que vai de 0’22’’ até aprox. 0’32’’, meu entendimento é que funciona como uma espécie de Ponte. A escala Akebono é executada em fusas pelo Violino e servem como preparação para o tema principal. 

O acompanhamento é feito por um Tambor que executa a marcação, ao mesmo tempo que dá movimento aos finais de frase do Violino, além de fazer uma espécie de chamada para a batalha, definindo o Tema 2.

Para finalizar, temos o terceiro momento que vai de 0’32’’ até o final 1’19’’. Nesta parte, há uma mudança de andamento, que é dobrado. A semínima = 74 é modulada metricamente para colcheia = semínima. 

Nesta parte, o Violoncelo e a Viola, realizam um ostinato rítmico-melódico dando a devida sustentação à obra. Já os Violinos participam mais efetivamente, por vezes dobrando as frases da Harpa; noutras, o tema principal (neste caso, uma 4ª Justa abaixo).

A percussão é executada por dois tambores. Um deles realiza uma marcação na binária sobre o compasso ternário (sim, um 2 sobre 3) sempre na borda do instrumento, enquanto o outro faz subdivisões sempre na pele do instrumento. 

O tema principal (Tema 2), usa a escala Yo polarizada sobre a fundamental Ré, que é executada pela Flauta (Shakuhachi). Este Modo segue por todo o trecho, com a exceção de uma pequena transposição meio-tom acima (Mi Bemol) em 0’49’’. Isto ocorre apenas para dar fluidez à melodia, retornando em 0’52’’ para a fundamental Ré.

Conclusão 

Como foi dito no início deste texto, as reflexões expostas não têm por objetivo esgotar as análises musicais possíveis, nem mesmo pretendem servir como modelo composicional. Contudo, ao realizar este texto, foi possível explicitar algumas das estratégias utilizadas no processo criativo. 

Num mundo tão concorrido e complexo, repleto de soluções fáceis para tudo, por vezes, a busca por soluções criativas estão naquilo que já conhecemos e possuímos certo domínio — ou seja, está em nós mesmos.

A Samurai é uma série de histórias em quadrinhos escrita e produzida pela Mylle Silva. O último volume da trilogia, A Samurai: Sujimichi, está em fase de finalização e em breve sua edição digital estará disponível para leitura gratuita. Visite a Têmpora Livraria e conheça as outras publicações da série.


Publicado

em

por