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Decolonizar, Desmercantilizar e Democratizar: Uma breve introdução ao pensamento de Boaventura de Sousa Santos

Em diversas obras e em vídeos disponíveis na internet, Boaventura de Sousa Santos discorre sobre os desafios contemporâneos, e este texto faz um apanhado de algumas de suas ideias. 

Boaventura é professor catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison, e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. É também diretor emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador científico do Observatório Permanente da Justiça. 

O professor também é um autor reconhecido e premiado em diversas partes do mundo e tem publicado extensivamente nas áreas de sociologia do direito, sociologia política, epistemologia e estudos pós-coloniais. Seus temas de pesquisa incluem movimentos sociais, globalização, democracia participativa, reforma do Estado e direitos humanos, com trabalho de campo realizado em Portugal, Brasil, Colômbia, Moçambique, Angola, Cabo Verde, Bolívia e Equador.

Em suas reflexões sobre a transformação social, Boaventura propõe três eixos centrais: descolonizar, desmercantilizar e democratizar. Essas propostas, chamadas de os “três Ds”, visam confrontar as estruturas dominantes e abrir novas possibilidades para uma sociedade mais justa e inclusiva. Sua análise é abrangente, explorando os impactos do capitalismo, neoliberalismo, democracia e colonialismo, especialmente no contexto latino-americano.

Decolonização como Superação do Colonialismo Moderno

Boaventura de Sousa Santos enfatiza a decolonização como uma transformação que precisa ir além das mudanças políticas e abarcar dimensões culturais e epistemológicas, subvertendo o modo como o conhecimento e as práticas sociais reforçam as desigualdades. 

Para o professor, o colonialismo moderno não é apenas um evento histórico, mas uma estrutura ainda vigente e “invisível” que se perpetua nas instituições, configurando um sistema hierárquico que define quem merece direitos e dignidade e quem é relegado à marginalização. Sousa Santos observa que o colonialismo “graduou a humanidade,” construindo um padrão onde certas populações, especialmente povos indígenas e negros, são vistas como “menos humanas” ou subordinadas, mantendo “a lógica da subordinação e exclusão.” 

Essa herança colonial, segundo ele, está enraizada em estruturas como o racismo institucional e o patriarcado, reforçando divisões de valor entre as pessoas e desqualificando experiências e saberes de comunidades não ocidentais.

A decolonização, para Sousa Santos, exige uma revisão crítica dos currículos educacionais e dos valores que permeiam o sistema jurídico e cultural. Sua afirmação é contundente: “ainda ensinamos uma história que ignora os vencidos” e que se concentra nos vencedores brancos, ocultando histórias de resistência e silenciando vozes de grupos historicamente oprimidos. 

Ainda em suas palavras, “continuamos a produzir racismo nas instituições,” e isso ocorre principalmente pela persistência de um currículo que “representa apenas uma parte da história,” reforçando o colonialismo epistemológico. A decolonização, então, envolve resgatar memórias e narrativas de povos que foram marginalizados, para reconstruir uma identidade nacional e social inclusiva e plural.

O que é decolonialidade?

É provável que você já tenha ouvido falar sobre o conceito de decolonialidade, mas vale a pena revisitá-lo. A seguir, apresentamos uma explicação didática sobre o tema.

Decolonialidade, ou decolonialismo, abrange um conjunto de práticas, conceitos e estudos dedicados a mitigar e até reverter os impactos da colonização nas sociedades marcadas por esse processo histórico. Ao contrário da descolonização, que se refere aos movimentos de independência das colônias africanas, asiáticas e latino-americanas em relação às suas metrópoles, o decolonialismo reconhece que a independência política não eliminou instituições, hábitos e práticas de origem colonial que ainda perduram.

Em outros termos, a decolonialidade, é um campo de pensamento crítico que questiona e busca desmantelar as estruturas de poder e conhecimento herdadas do colonialismo. O conceito sugere que, mesmo após o fim das colônias, as relações desiguais estabelecidas entre ex-colonizadores e ex-colonizados continuam a influenciar as sociedades contemporâneas em diversos aspectos. A decolonialidade, portanto, examina e critica essas heranças, propondo uma reestruturação que valorize conhecimentos e culturas marginalizados pelo pensamento eurocêntrico.

Os estudiosos da decolonialidade argumentam que as esferas de poder, saber e ser — conceitos conhecidos como “tríade colonial” — perpetuam uma hierarquia global que beneficia os países e as culturas que historicamente dominaram o sistema colonial. 

O colonialismo, segundo essa abordagem, não se limitou à exploração territorial e econômica; ele se estendeu ao controle das narrativas, do conhecimento e da identidade. Assim, as perspectivas decoloniais buscam criar alternativas para superar essa dominação, promovendo uma epistemologia plural e intercultural que reconheça saberes diversos, especialmente os conhecimentos indígenas, afrodescendentes e populares, frequentemente deslegitimados pelos critérios tradicionais.

A decolonialidade também se diferencia de conceitos como pós-colonialismo, que foca principalmente nas consequências do colonialismo após a independência política dos países. Dessa forma, os autores decoloniais defendem uma crítica à modernidade, identificando-a não apenas como uma etapa de progresso, mas como um projeto inseparável da lógica colonial. 

Esse enfoque teórico tem ganhado força na América Latina e em outras regiões que compartilham experiências de colonização, propondo alternativas para uma construção de conhecimento e organização social que privilegie a igualdade, a inclusão e o reconhecimento das identidades e histórias marginalizadas.

Desmercantilização e o Combate ao Neoliberalismo

Retomando o pensamento de Sousa Santos, em um segundo eixo, o professor discute a desmercantilização como uma necessidade para romper com a lógica neoliberal que “transforma tudo em mercadoria”. 

Para o catedrático, o neoliberalismo por seu efeito de transformar direitos básicos, como saúde, educação e previdência, em produtos que são acessíveis apenas para quem pode pagar, leva a uma sociedade onde “tudo está à venda”. Nas palavras dele, “essa mercantilização corrói a própria noção de bem público e conduz a uma precarização generalizada, em que a qualidade de vida da maioria é sacrificada para satisfazer a lógica do lucro”. 

“O capital financeiro,” afirma Sousa Santos, “é destrutivo e autorreferencial”, pois cria riqueza sem produzir bens tangíveis, priorizando a especulação em detrimento do bem-estar social. O professor também critica a hegemonia do capital financeiro, que ele descreve como uma “força destrutiva” que prioriza a rentabilidade acima de qualquer responsabilidade social, exacerbando a desigualdade e o sofrimento humano. 

Essa visão fica evidente em sua observação de que o capital financeiro é um “instrumento que asfixia o capital produtivo”, gerando uma competição que privilegia apenas o lucro e despreza as necessidades humanas. Esse sistema, para Sousa Santos, ameaça os próprios fundamentos democráticos, pois “começa a regular a democracia”, subjugando o poder político aos interesses do mercado e transformando eleições e políticas públicas em meros reflexos dos interesses financeiros.

Ainda sobre o tema, o professor alerta que a desmercantilização é o básico para preservar os “bens públicos”, que não devem ser subordinados ao mercado, pois isso comprometeria o desenvolvimento equitativo e solidário das sociedades. “A luta contra o neoliberalismo é também uma luta pela preservação da humanidade”, e o combate ao neoliberalismo advoga por um retorno a políticas sociais que coloquem o bem-estar da população como prioridade, uma vez que o Estado deve servir ao povo e não aos interesses financeiros.

Democratização e a Crítica ao Modelo de Democracia Liberal

Em um dos vídeos consultados para a elaboração deste texto, o professor argumenta que a democratização precisa ir além dos limites do modelo liberal tradicional, o qual ele considera insuficiente para lidar com as demandas e complexidades das sociedades contemporâneas. 

Sousa Santos defende uma “revolução democrática” que vá além da mera representação política, incorporando práticas de participação direta e ampliando o poder das comunidades na tomada de decisões. 

Em sua visão, o modelo liberal esvazia o poder popular ao estabelecer uma democracia de “baixa intensidade”, onde as decisões políticas estão cada vez mais sujeitas aos interesses econômicos, ou seja, a verdadeira democracia deve ser “participativa e popular”, capaz de refletir a diversidade social e garantir que todos os segmentos da população sejam ouvidos.

O economista português critica também o surgimento da “política do sentimento”, fenômeno onde populismos exploram ressentimentos e dividem a população em “vítimas e inimigos”, instrumentalizando medos e preconceitos para fins políticos.

O exemplo dado para esse problema é dado com o cenário político nos Estados Unidos, onde trabalhadores brancos são incentivados a verem os trabalhadores latinos como concorrentes e inimigos. Essa dinâmica, segundo ele, impede a solidariedade e cria uma política “que aliena e fragmenta”, deixando a democracia vulnerável a manipulações e discursos de ódio.

Outro aspecto relevante que Sousa Santos aborda é a importância da memória coletiva como um instrumento de resistência. O professor expressa, com certo tom de lamento, que “é quase dramático que os continentes a cada 20 anos percam a memória do seu passado”, ressaltando como conquistas sociais e políticas podem ser rapidamente esquecidas em ciclos reacionários. 

A perda de memória facilita o avanço de políticas que enfraquecem a democracia, deixando-a vulnerável a retrocessos e transformando-a em uma “democracia de baixa intensidade” com facilidade, referindo-se à América Latina e sua tendência a esquecer conquistas sociais e democráticas, permitindo que ciclos reacionários desfaçam desenvolvimentos históricos. 

Esse esquecimento histórico, afirma Sousa Santos, facilita a instalação de uma democracia esvaziada de significado, onde a participação pública é limitada e as decisões ficam nas mãos de poucos. Para o professor, a preservação da memória é essencial para construir uma identidade coletiva que sustente práticas democráticas autênticas e que evite retrocessos políticos.

Para Finalizar

As críticas de Sousa Santos destacam os problemas atuais e também indicam um caminho de resistência que requer uma atuação conjunta das forças sociais. Ao recuperar e fortalecer a memória histórica, ao combater a lógica neoliberal e ao “reinventar” a democracia, nosso autor sugere que podemos construir uma sociedade mais justa e humanizada.

Para o professor, esse ainda é um “objetivo utópico”, mas fundamental para garantir que a democracia seja uma força de inclusão e não de exclusão, uma luta constante que requer, acima de tudo, a coragem de confrontar as desigualdades estruturais e as forças que as perpetuam.


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