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Uma parte de mim é só vertigem cismas mylle silva

Uma parte de mim é só vertigem

Tem um poema do Ferreira Gullar que nas horas mais inusitadas brinca com a minha memória, como ondas do mar. Estou falando do poema Traduzir-se, que começa assim:

Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo

O poema inteiro é uma pérola — assim como é outra pérola ouvir o próprio Gullar contando sobre sua motivação para escrevê-lo.

Quem sou eu? Eu sou o poeta ou eu sou essa pessoa aqui que tá atormentada com esses problemas?, ele comenta que se questionou pouco antes de elaborar a primeira estrofe do poema. Eu descubro que eu não sou só um, ele continua, eu num momento sou uma coisa, em outro momento sou outra.

A força desse poema está na síntese de uma condição humana vivida por todos nós: o conflito de como a realidade se apresenta e do que nós esperamos dela. A minha leitura desse poema vai além do desdobramento do eu: minha leitura é o motivo desse desdobramento.

Acredito que, em maior ou menor grau, estamos chegando no final de 2021 meio quebrados, seja por causa da pandemia, uma crise mundial; seja por causa desse desgoverno, uma crise nacional. Está cada vez mais difícil pensar em um futuro, em qualquer futuro, com o presente da forma como tem se apresentado.

Há dois anos, você provavelmente tinha planos bem diferentes do que a realidade que está vivendo agora, planos que você teve que adaptar, adiar ou até mesmo desistir. Apesar desta ter sido a realidade que se apresentou a partir de março de 2020, encarar essas pequenas derrotas é dolorido e, dependendo do coquetel de emoções, pode dar ruim.

No cerne de cada Cisma que escrevo tem um tempero de como encaixar o modo de vida em que acredito na realidade como ela é. Tenho verdadeira paixão por incentivar as pessoas a continuar escrevendo e produzindo seus projetos, mas não são poucos os conflitos que acontecem dentro de mim e colocam em dúvida tudo aquilo em que acredito.

Resista. Foi o que Ignácio de Loyola Brandão falou no evento presencial Diálogos Contemporâneos (disponível no YouTube) que aconteceu em Curitiba, no dia 03/11, e que eu e o Menin fizemos questão de ir (aliás, foi nosso primeiro evento literário depois da pandemia!). Ouvir um senhor de 87 anos, lúcido, que já enfrentou a Ditadura Militar, que viu o país crescer e, mesmo assistindo a esse retrocesso, acredita que é preciso resistir, foi revigorante.

É para esses momentos que vale a pena resistir, comentei no fim da noite. Mal sabia eu que em menos de vinte e quatro horas estaria quebrada por dentro.

A realidade não é boa, nem lógica, nem justa. A realidade é o que é, caótica. Eventos que nos fazem bem e eventos que nos fazem mal acontecem o tempo inteiro, ao mesmo tempo. O máximo de controle que temos é sintonizar em algum deles e seguir, ignorando todo o resto.

Quando a realidade se apresentou para mim, eu sintonizei na vibe mais tensa e quebrei. Visto de fora, o evento em si foi uma besteira, mas uma vez sintonizada naquele acontecimento, todas as minhas crenças foram colocadas à prova.

Fiquei mais de uma semana apática, duvidando até do ar que eu respirava, até conseguir encontrar uma saída daquele looping de impostora com desejos de vingança.

O que eu pensei enquanto estava na vibe tensa? Basicamente que nenhum esforço meu mudaria nada, que a realidade continuaria sendo a mesma merda, não importava o que eu fizesse. Ficar viajando com escrita, com arte, com criatividade, com incentivar as pessoas a investir nas suas ideias não passaria disso: de uma viagem. À grosso modo, a realidade não mudaria porque eu influenciei uma meia dúzia de pessoas a escrever.

(E é nessa parte que quem eu influenciei a escrever deve estar pensando: mas você me influenciou e isso me fez bem, você precisa lembrar disso. Eu sei, lembrei durante o looping.)

É claro que fui pedir uns conselhos a ele, um dos maiores filósofos que já viveu: Sócrates. E olha que ele estava numa situação bem pior que a minha; estava condenado à morte.

Estes tais [indivíduos muito ignorantes] quando debatem algum tema, não se preocupam absolutamente em saber como são, de fato, as coisas a respeito de que tanto discutem, senão de deixar convencidos os circunstantes de suas próprias asserções. Nisso põe todo o empenho.

Em outras palavras: não adianta argumentar com quem não quer ouvir. Para minha infelicidade, posso passar a vida inteira lendo, escrevendo e refletindo que sempre, sempre estarei sujeita a situações em que, ao buscar fazer o certo, eu sairei ferida pela ignorância do outro.

No final das contas, Ferreira Gullar já me deu todas as respostas em Traduzir-se. Para conciliar o meu conjunto de ideias, valores e modo de vida com a realidade como ela se apresenta, preciso dividir-me em duas ou mais e mantê-las separadas, como departamentos de mim. Assim, quando uma cair, a outra será capaz de levantá-la para que todas continuem resistindo e acreditando. 

Talvez não seja possível mudar o mundo inteiro, mas devo reconhecer: a meia dúzia de pessoas que influenciei a escrever me enchem de orgulho e me ajudam a mergulhar nesse mar de dúvidas em busca de novas pérolas. E é por esses encontros maravilhosos de hoje e do futuro que sim, que continuarei resistindo.

Espero que essa Cisma seja como um abraço e te incentive a resistir também.


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