A atmosfera do planeta Terra, impregnada do nocivo gás cianogênio presente na cauda do cometa, se tornará tóxica. Além disso, ao se aproximar demais de nossa órbita, o corpo celeste causará alteração nos ventos e nas marés, provocando tsunamis e maremotos, tremores e furacões, e o caos decorrente provocará a extinção da humanidade como a conhecemos.
O ano era 1910. O cometa em questão, o Halley. E o parágrafo acima é um resumo do que saiu nos jornais da época. Alguma semelhança com as preocupações sobre o bug do milênio, na virada para o ano 2000?
A humanidade sempre teme o que desconhece. Mesmo que a ciência tenha dito que os dois casos não causariam estragos, o senso comum se alimenta do temor propagado pelo sensacionalismo. Pessoas de todas as épocas caíram em golpistas que vendiam soluções para sobreviver ao fim do mundo.
Em 1916, o diretor norueguês August Blom retratou a histeria coletiva pela passagem do Halley no filme O fim do mundo, (que você pode conferir no youtube, se estiver disposto a ver o apocalipse retratado em um filme mudo que é, apesar disso, bastante eloquente).
Para além do inventivo trabalho de Blom (em uma época em que os efeitos especiais não contavam com CGI) o que chama a atenção é esse interesse amedrontado da humanidade sobre o fim. A julgar por Hollywood e seus congêneres, o mundo já era para ter acabado faz tempo…
Fins do mundo a la carte!
Escrevo essa coluna na esteira de The Last of Us, a série da HBO que acumula elogios como a primeira adaptação de games que realmente deu certo na tv ou cinema. A série se passa duas décadas após a derrocada da humanidade, aniquilada por uma pandemia na qual um fungo denominado Cordyceps transforma seus hospedeiros humanos em – você já deve imaginar – zumbis.
Excessos narrativos (e metáforas) à parte, o audiovisual segue explorando a extinção da humanidade, mais de um século depois. Já que o Halley só volta em 2061, o medo da vez é o de elementos minúsculos que vivem entre nós (e tanto faz se falamos de fungos, vírus ou bactérias: o horror atávico parece ser o mesmo).
Nas telas (e também nos livros), o mundo já acabou por causa de hecatombes nucleares, de invasões alienígenas, pelo descontrole das questões climáticas, pelo esgotamento das condições de vida na Terra, pela revolta das máquinas etc. e contando. Um cardápio e tanto!
De acordo com um levantamento do IMDB, que é um dos maiores bancos de dados sobre cinema e séries de tv, de 2000 a 2018 houve mais filmes sobre o apocalipse do que nos cem anos anteriores de produção cinematográfica.
Por um lado, com o avanço da tecnologia os realizadores puderam levar para a tela catástrofes antes impensáveis (um salve à criatividade dos primeiros cineastas!), mas não é só isso. Há um outro lado que diz que o fim do mundo resta em nosso imaginário coletivo desde as primeiras civilizações. Afinal, o mundo que era para ter acabado em 21.12.2012, certo povo Maia? Só que acabou não acabando. As ameaças se acumulam, então, geração após geração, e a tecnologia apresenta novos dilemas. Mesmo que não sejam tão novos assim.
Os próximos últimos de nós
Mitos sobre o fim do mundo são a maior especulação da humanidade. Desde (pelo menos) a invenção da escrita já se imaginava como e quando seria o fim. Depois que as duas principais religiões monoteístas dominaram a narrativa, esse fetiche apocalíptico invadiu de vez nosso imaginário.
Coincidência ou não, cristianismo e islamismo profetizam um apocalipse, com muito fogo e trombetas, há séculos e séculos. Ou seja, fomos inseridos em uma forma de ver a realidade que nos engloba e antecede, e que prega que as coisas precisam ter um começo e um fim (por mais que a natureza seja feita de ciclos, o que, aliás, faz muito mais sentido, mas isso é assunto para outra conversa). A indústria cultural contemporânea apenas sistematizou essa neura e a transformou em produto.
A especulação, portanto, não deve ser sobre quando o mundo vai acabar. Que tal pensar qual temática dominará os roteiros apocalípticos da próxima década? Os desastres climáticos com certeza renderão muita computação gráfica e milhões em bilheteria (prevejo dilúvios e nevascas). Isso vale para a ameaça de rebelião da inteligência artificial, que provavelmente irá nos escravizar em franquias rentáveis recheadas de diálogos ininteligíveis (roteirizados pelo ChatGPT?).
Ameaça extraterrestre? Queda na cotação: é retrô demais, assim como as hecatombes nucleares. Saíram de moda (saíram mesmo?). Zumbis e meteoros? Esses sim seguirão atemporais (nessa especular cotação), mas o cavalo em que devemos apostar são as pandemias, os vírus mortais, silenciosos e de alto contágio que nos lembrarão do passado recente que queremos esquecer. Nem imagino o que a pandemia de covid-19 instaurou na psique de toda uma geração…
A única aposta infalível, porém, é a de que incontáveis repetições de fins do mundo seguirão habitando nossa fantasia, ad infinitum, de forma direta ou indireta, agora alimentadas por estatísticas e disputas políticas, para depois ganharem as onipresentes redes sociais, antes de finalmente provocarem uma histeria sem precedentes nas cenas cheias de efeitos especiais dos blockbusters. Afinal, um fim do mundo nunca esteve tão próximo.