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A escuridão também tem o medo do escuro

Em pouco mais de um século, a energia elétrica virou do avesso a forma como a humanidade vive. Nossa relação com a natureza, nosso sono, nosso trabalho e nosso tempo livre foram transformados a partir do momento em que pudemos escolher acender lâmpadas durante a noite.

A luz elétrica, muito mais do que a internet, é uma dessas tecnologias com as quais estamos tão acostumados hoje que quando ela nos falta, parece que nos foi arrancado um pedaço. Não raro, em momentos de falta de energia elétrica, nos sentimos perdidos, como se parte do mundo palpável tivesse sido arrancado de nós — e se o corte de energia for no início da noite, pior.

Porém, não é exatamente da energia elétrica que sentimos falta, mas sim daquilo que ela proporciona a nós. Como muito bem coloca Mcluchan, apenas não interpretamos a luz elétrica como um meio porque não associamos ela a qualquer conteúdo específico.

No entanto, mesmo que não estejamos conscientes disso, é possível associar inúmeros conteúdos à luz elétrica, desde um procedimento cirúrgico até um jogo de futebol realizado à noite — em outras palavras, luz elétrica é informação.

Se na época em que Mcluhan escreveu sua teoria ainda não estava claro para as empresas que trabalhar com tecnologia e eletricidade significava trabalhar com informação, hoje o cenário é o oposto: a informação se transformou na maior riqueza do mundo capitalista, e todas as empresas, independente do porte que tenham, precisam obter informações de seus possíveis clientes caso queiram prosperar.

Não é segredo para ninguém que cada uma de nossas ações na internet deixa rastros que são coletados por cada site, aplicativo, celular, assistente virtual, câmera e microfone que estiverem por perto — e, tudo isso, com o nosso consentimento. E, mesmo que, na maioria dos casos, os dados coletados não sejam vinculados aos nossos nomes, apenas com o cruzamento dos nossos rastros é possível montar um perfil incrivelmente específico de cada um de nós.

Apesar de algumas reflexões de Mcluhan serem questionáveis, é impossível não admirar o sabor visionário que suas ideias têm. A afirmação de que todo meio ou veículo de comunicação também é uma arma poderosa para abater outros meios e veículos e outros grupos não poderia ser mais fresca e alinhada ao modus operandi do bolsonarismo e outros movimentos fascistas que eclodiram a partir dos anos 2000.

Os movimentos fascistas, baseados na mentira e na desinformação, prosperaram devido à comunicação instantânea propiciada pela internet, sufocando opiniões divergentes e que poderiam agregar ao debate público. Em complemento a isso, à medida que as telas foram se tornando parte cada vez mais integrante de nossas vidas, a comunicação escrita foi sendo substituída pela comunicação imagética, o que Flusser denomina de pós-história. 

Vivemos, assim, com a impressão de que tudo está iluminado. A época das luzes é a época das grandes ideias; estar sob a luz do divino é uma benção; viver na luz é o bem, a proteção. No entanto, quando tudo está aparentemente iluminado, nada está nas sombras — ou seja, é como se nada escapasse aos nossos olhos. Essa ilusão da inexistência de invisibilidade tem como consequência a exacerbação do culto às imagens, abrindo as portas para uma crise da visibilidade que dificulta não só a identificação das facetas sombrias como também, pela saturação demasiada, das facetas iluminadas.

Nesse contexto, o olho se torna o principal contato com o mundo externo, e quanto mais vemos o mundo, menos o experienciamos. De tanto ver e rever, repetidas vezes, nos tornamos indiferentes, progressivamente cegos, como se descolados de realidades que nos são próximas ou até óbvias.

Assim, ao mantermos o nosso corpo parado, sob a proteção da luz, recebendo de bom grado informações em forma de imagens, substituímos os demais sentidos pelo olhar, e depositamos nele toda a nossa leitura de mundo.

No entanto, a questão permanece: o que faríamos se a luz elétrica acabasse, para sempre? Como nos lembra Mcluhan, um homem, mesmo armado, não consegue ir muito longe no escuro — ainda mais um homem condicionado a confiar apenas naquilo que vê.


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