A realidade não pode ser posta em palavras — ela é muito mais complexa e rica do que qualquer palavra que possamos inventar. Mesmo assim, somos impelidos a buscar histórias (nossas e de outros) que conversem com o que a realidade é capaz de provocar em nós.
Sentir a realidade na sua forma mais pura é fácil, basta alguns minutos de meditação. Ao fechar os olhos e se concentrar apenas na sua respiração, você ouvirá sons, experimentará sensações e captará cheiros que, com a mente lotada de pensamentos urgentes, seria incapaz de perceber.
Para alguns, pode soar como uma besteira, mas parte do ofício da escrita é manter a percepção aguçada — afinal, estamos escrevendo para outras pessoas que, assim como nós, vivem no planeta Terra (ao menos, por enquanto).
É claro que você pode argumentar que as realidades variam de acordo com o que está ao redor de cada um — e, se não fosse isso, seria impossível inventar mundos. No entanto, uma vez vivendo em um mesmo mundo, é preciso olhar para o que há de mais humano nele — e quanto mais temperos humanos uma história tiver, maiores são as chances de ela mexer com as emoções dos leitores.
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Alguns afirmam que é preciso sair pelo mundo e viver experiências para criar boas histórias. Ter uma vida desregrada, conhecer muitos lugares e pessoas e estar sempre em movimento estão entre os estereótipos dos escritores. No entanto, como explicar gênios como Kafka, Jane Austen, Emily Dickinson, Dalton Trevisan e tantos outros que viveram suas rotinas atreladas ao local de seu nascimento, em alguns casos nunca tendo deixado o lugar?
Catalogar o que é melhor ou pior para o desenvolvimento do ofício da escrita é quase impossível. Apesar de existirem alguns pontos comuns nos conselhos de escritor para escritor (leia muito, treine a escrita, seja observador etc.) todas as habilidades necessárias para a produção literária podem receber outras camadas, a depender da pessoa.
Um exemplo? Bem, basta se perguntar se você é do time que gosta de escrever isolado no seu canto, ou em locais movimentados, como cafés, para poder observar as pessoas. Ainda pensando nesse quesito, você gosta de ouvir música enquanto escreve (sozinho ou em locais movimentados) ou prefere ficar ouvindo os sons do ambiente? Ou quem sabe ambos, com uma música bem baixinha? E a música é com ou sem letra?
São essas pequenas escolhas que definem a realidade imediata no momento da escrita. Mas voltemos à outra realidade, aquela que você vive enquanto não está escrevendo.
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Dedicar-se à escrita é como viver um caminho (dô) das artes orientais. Limitar a escrita apenas aos momentos em que nos sentamos para escrever é injusto. O ofício da escrita é, ao que me parece e como eu o vivo, uma filosofia, um modo de vida. Escrever permeia todo e cada um dos meus atos, observações, pensamentos, sonhos e valores.
Assim, os momentos de não-escrita, de contato com o mundo de fora, se tornam também momentos de escrita — ou, se preferir, de ajuste de foco e coleta de material sobre o que escrever. A realidade está a um olhar pela janela, apenas esperando um observador atento para captá-la e transformá-la em história.
O clichê do escritor-observador. Talvez, mas que parece estar ficando para escanteio com o emaranhado de telas luminosas e suas imagens vibrantes às quais nos submetemos uma após a outra, sem questionar. Com tantos lugares exóticos-distantes para sonhar e narrativas exuberantes esperando que nós as consumamos uma atrás da outra, olhar pela janela e prestar atenção é pedir demais.
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Escrita e realidade pseudo-entrelaçadas. Escrever um pouco (200 palavras, no máximo) e então levantar para (coloque seu próximo afazer doméstico/social aqui) = pausa planejada. Ela não irrita, não machuca, porque você já se sentou pensando em pausar dali X minutos-palavras.
Escrita e realidade entrelaçadas. Sentar para escrever no mundo como é, com as pessoas ao redor como são, com seus silêncios, barulhos e pedidos de atenção. Alguns fatores são controláveis (como as notificações do seu celular, que eu aconselho desligar), outros não, como alguém da sua família querendo te contar a última notícia ou pérola que descobriu. Pausar a escrita e ouvir.
Escrita e realidade nada entrelaçadas. Fechar a porta do seu casulo de escrita, como Stephen King e tantos outros aconselham, para poder se concentrar no seu mundinho imaginário ilimitado e espremer o suco das palavras em sua melhor forma. Realidade deixada para depois e possível fonte de frustração constante.
John Cage defende a interrupção. Ao invés de ficarmos irritados com ela, deveríamos tirar proveito das possibilidades que ela oferece. Essa ideia se opõe diretamente ao conceito de fluxo.
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Um terço do tempo de escrita é “e se…?”. E se ninguém ler, e se eu não conseguir tempo para escrever, e se eu desanimar, e se ficar uma merda, e se esquecerem de mim depois que eu morrer, e se eu perder tudo que já fiz, e se eu não tiver dinheiro, e se eu esperar até x situação acontecer, e se eu for muito ruim mesmo?
O segundo terço do tempo de escrita é análise de resultados. Insira aqui releituras, esperas, edições, divulgações mil pela internet, et cetera. Diga que isso tudo não é tempo de escrita e estará se iludindo. Tempo de escrita é tudo o que você faz com os seus textos, seja remexendo neles ou criando meios para que eles remexam com outras pessoas.
O terceiro terço (talvez menos, a depender da pessoa), é o tempo de escrita, o ato no flagra. É cada vez que você deita palavras no papel ou as coloca de pé numa tela, o momento de. A hora do prazer, de dar cosquinhas no cérebro, de deixar rolar o não-planejado, o caos imediato que mora na ponta dos seus dedos.
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Coloque o córtex pré-frontal para dormir (sem bebidas nem entorpecentes, de preferência) e deixe fluir. Se não fluir todos os dias, simplifique: viva apenas para os dias que fluem.