Qualquer assunto pode ser interligado, basta que seja colocado em uma determinada ordem. O exercício de escrever um poema em grupo, com cada um falando uma palavra que não tenha nenhuma relação com a anterior, funciona porque, no final do exercício — que pode ser considerado um ato de edição — agrupamentos de palavras sempre se relacionam.
Assim, para escrever algo que faça o mínimo de sentido, basta que tenhamos algum ponto de partida. Todo o resto — rigor, estilo, ferramentas, linguagem, tonalidade, et cetera — são opcionais. É bom tê-los a mão, porque leitores buscam pontos fixos, mas também adoram ser surpreendidos por inversões.
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O ponto de partida, esse sim, varia. É preciso ter o esboço de um mapa, tão abstrato quanto atribuir a constelações as previsões para os nossos dias. Infelizmente é preciso ter esse mapa sempre por perto, porque a aleatoriedade pura não gera narrativa escrita.
O ato de escrever é tão matemático quanto a matemática e a música. É composição de algo para ser entendido, analisado e refletido por alguém, feito para provocar ação de — mesmo quando não se quer fazer entender. Já o emocional, o sentir de fato no binário escrita-leitura, não pode ser encarcerado em nenhuma linguagem que já existe ou que está para ser inventada.
Por isso, apesar de mexer com as emoções, comunicar-se exige lógica. Sendo assim, por mais aleatória-caótica que seja a construção de uma narrativa, ela ainda exigirá algum plano.
Arrisco que quanto mais caóticos queiramos aparentar, maior terá que ser o mapa.
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Escrever uma narrativa pressupõe um querer-chegar-a-algum-lugar. Porque jogar um monte de pensamentos fora é apenas jogar um monte de pensamentos fora. A estética da escrita pela estética da escrita não tem valor quando o objetivo é contar — se for apenas por estética, que se faça um poema.
Narrativa é um bicho diferente. A gente não pare ele apenas com vontade motriz e sentido enviesado de editor. História precisa valer o tempo de quem a lê.
Mas há de se concordar que mapas carecem de criatividade. Esteja você fazendo um esboço (como propus antes) ou um mapa detalhado, aconselho que deixe muitas lacunas disponíveis para a construção de atalhos — quanto mais, melhor.
Nada é definitivo até que as ideias sejam deitadas em folio.
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O tal mapa, eu sei. Antes de estar aqui eu estava ali tentando montar um e chicoteando — a mim e ao mapa —, mapa mau, mapa horrível. Será que é no mapa que jogamos uma ideia fora? O limite da insistência, esse bichano vadio. O limite da merda toda que insistimos em chamar de arte.
Para colocar panos quentes, toda loucura precisa de certa organização para ser apreciada. Se passar do ponto, será só um monte de nada vezes nada com um artista autodeclarado tentando explicar. O charme das narrativas é que, por mais rebuscadas esteticamente que sejam, elas são autoexplicativas. Então, nada de vômitos, por favor.
Sejamos escritores limpinhos: escrevamos papinhas vitaminadas aos nossos leitores.
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Como apenas dizer “acho ruim” pode ser uma afirmação generalizada, vou falar, de um ponto de vista pessoal, sobre quando o estou escrevendo encontra o o que acabei de escrever está ruim — e o a posteriori.
Tenho uma ideia. Ela brilha e nós vivemos juntas por certo tempo (que pode variar de um milésimo de segundo a anos) e sonhamos tudo o que pode acontecer depois que essa ideia for concluída e ganhar o coração dos leitores e for uma poderosa demonstração de que sim, foi uma ideia que valeu o investimento e meu cérebro se acende e eu já quero sair escrevendo-executando e zaz, e zaz, naquele clima de animação do Chaves tendo uma ideia.
Começo da execução da ideia. Mesmo clima de animação, mas agora sem o filtro rosa. É mão na massa, suor, reflexão, pensa, pensa, pensa, e a inquietação começa. Já estou perdendo muito tempo nessa ideia (às vezes só se passaram alguns minutos), não vai dar em nada. Mas continuo, porque atravessar é o que importa, certo? Lembra das ideias de antes que você achou que não dariam certo e deram? Essa é mais uma.
Passagem de tempo. É aqui que algumas ideias se descabelam e outras sobrevivem. Não há muito o que falar das que sobrevivem, elas só chegam ao ponto final — são as que se descabelam que nos interessam agora.
Em alguma fase do processo, encaro a ideia e percebo que não era bem isso que gostaria de ter escrito. Antes, com menos experiência de escrita, era mais difícil ver que não era bem isso, mas hoje ficou fácil. Se depois de umas 500 palavras eu não estiver satisfeita, é sinal de que nem preciso continuar. Se eu não estiver vivendo a história que estou escrevendo, bora começar de novo.
Um tanto desse “viver” está no mapa, mas não só nele. Está também em vestir a personagem, seus trejeitos, sua linguagem. Descrições e diálogos, por mais bem escritos que sejam, não me bastam. Se eu não visto a personagem, é porque a história não funciona pra mim. E, se não funciona pra mim, por que vai funcionar pra mais alguém? — logo, é ruim.
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Depois de três tentativas, acho que estou vestindo a personagem — e a vida real volta a fazer sentido porque há uma vida fictícia sendo gestada nesse exato momento. A partir de agora sou essa personagem e se eu não desistir dela, ela não desistirá de mim.
Existem experiências criativas diferentes dentro da escrita — ou motivações, como George Orwell já apontou antes. Mas ele, até quando escrevia ficção, se deixava invadir pelo espírito do jornalismo. Estética, história, registro, política, bravo, bravo!
Por aqui, estou me descobrindo de outra linha, a do convidar para viver. Ser além-beleza, além-estilo, além-registro, além-metáfora: mergulhar o leitor nas personagens a ponto de fazê-los sentir por dentro o que aquelas pessoas inventadas sentem.
Encontrado o mapa e o personagem vestível, hora de criar.
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A graça da escrita começa quando não nos preocupamos mais em inventar e nem em contar as palavras. Quando já não esperamos nada e a imaginação flui sozinha, brote dela ficção ou argumentação. Nada de encarar a folha branca, engolir à seco a frustração, executar o ritual perfeito. Nesse estágio, escrever é um misto de prazer simples com tarefa rotineira.
Cada escritor, em cada estágio do ofício, tem o seu limite de escrita. Falo aqui de limite físico mesmo, não de processo, o limite de quantas ideias consegue colocar pra fora no decorrer de um determinado período — um dia, um mês, um ano. Esse limite leva em conta não apenas o ato da escrita como hábito, mas também o hábito de nutrir e desenvolver as próprias ideias. E quanto mais experiente o escritor, menos cansativo será escrever.
Mas vale ressaltar que: escrever só é divertido quando temos alguma, mesmo que mínima, noção do caminho. Escrever pilhas e pilhas de nadas sem rumo é desgastante e desanimador.
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Palavras aleatórias de um editor de texto (pontuação minha):
Eu não sei — o quanto quiser — que a realidade é uma coisa pra fazer. Um pouco de dor no peito do pé e a música do mundo de uma pessoa. Muito mais do outro lado da janela, correm de uma vez mais, a gente não sabe como é. O único problema é que você está escrevendo tudo errado.
Algumas palavras sobrando? Sim, passo a tarefa de edição pra você — assim o trecho ganhará um toque da sua personalidade.
Qualquer assunto aleatório pode ser empilhado e fazer sentido. Fazer sentido não significa que seja interessante, que conte algo. É como um jogo de azar: aposta-se em palavras; às vezes tira-se o prêmio máximo, às vezes não.