Escrever o livro que nunca escrevi. O livro perfeito, com uma história bem elaborada, que encante os leitores. Sentar e me entregar à escrita desse livro maravilhoso, para então finalmente ter meu trabalho reconhecido.
A maioria de nós, escritores, sonha com o otsukaresama, o “obrigado pelo esforço”, a recompensa ao final do trabalho. Mas então tropeçamos na pedra do tempo, que rola para longe enquanto tentamos administrar nossos desejos, nossos motivos e nossa vida prática.
Considero o tempo, junto com a saúde, os bens mais preciosos que usufruímos na vida. Ambos, se desperdiçados, não mais retornam. Apenas quando estamos com nossa saúde, física e mental, em equilíbrio, é que somos capazes de aproveitar bem o tempo.
O físico Carlo Rovelli afirma que somos todos viajantes do tempo, uma vez que não há saída além de viajarmos para o futuro e sua escuridão, como disse certa vez Virginia Woolf. No futuro, esperamos encontrar versões melhoradas — ou, ao menos, diferentes — do mundo e de nós mesmos, versões que nos aconselhem sobre como viver no agora. No futuro, teremos realizado nossos sonhos e saciado nossos desejos, nos tornando felizes e plenos.
Mesmo que você seja um pessimista de carteirinha, historiadores como Yuval Harari já nos mostraram que a humanidade nunca foi tão próspera como em nossa época — e que, apesar dos desafios que enfrentamos, a tendência é que continuemos prosperando por muitos séculos, principalmente se aprendermos a trabalhar, em nível global, de forma cada vez mais cooperativa. Mas, para que isso aconteça, nós temos que vencer o nosso calcanhar de Aquiles: o nível individual.
Sempre fui viciada em datas. Mesmo sem ter o costume de manter diários, gosto de anotar a data de cada coisa que escrevo, para registrar o quando das ideias, transformando todos os dias em pequenos aniversários, em microciclos que se completam. Calculo o tempo o tempo todo, passeando pelas fases da minha vida e avaliando o que foi de mim até ali.
Não raro, concluo que desperdicei meu tempo — em especial quando relaciono tempo com produção escrita.
Já fazia alguns anos que estava com vontade de ler o ensaio Por que escrevo, do George Orwell. Havia lido várias resenhas sobre, mas não o texto em si, até comprar o livro da editora Penguin no último mês. Como todo bom ciclo, agora é minha vez de falar sobre o ensaio na esperança de deixar mais pessoas com vontade de lê-lo também.
George Orwell dá quatro motivos principais pelos quais todo o escritor escreve: puro egoísmo (a vontade de escrever), entusiasmo estético (transformar a palavra escrita em uma forma de arte), impulso histórico (o desejo de registrar acontecimentos do seu tempo) e propósito político (mostrar ideias e conceitos para outras pessoas). Orwell afirma que, dependendo do escritor, alguns aspectos se destacam mais que outros.
Depois de uma breve avaliação, concluí que minha cartela de bingo está completa: escrevo pelos quatro motivos.
No entanto, antes e depois de falar sobre essas motivações, Orwell comenta sobre seus anos de formação e como é impossível para um escritor escapar do que ele chama da “atitude emocional” adquirida ao longo desses anos.
Anos de formação, conceito engraçado esse, que divide a vida entre estudante e professor, entre amador e profissional. Quando olho para os primeiros vinte anos da minha vida, enxergo uma miscelânea de influências que nunca ousaria chamar de formação. Entre escola, livros, videogames, mangás, programas de auditório, desenhos, novelas mexicanas, séries, filmes e músicas, absorvi, como uma esponja, o que as várias formas de entretenimento tinham a oferecer.
Mas o tempo passado é do passado. Como eu disse, estamos viajando para o futuro — e é daqui que partiremos. Agora que já sei porque escrevo e que não posso me livrar da “atitude emocional” que me permeia — que, no meu caso, deva ser a habilidade de absorver informações diversas —, sigamos em busca do livro perfeito.
George Orwell escreveu seu ensaio sobre escrita aos 43 anos, 3 anos antes de sua morte. Além de escritor, ele era jornalista, e poderia ter seu nome engolido pelo tempo caso não tivesse se empenhado em perseguir o seu ideal. Mas, apesar das guerras, seu tempo era outro, menos coagido e livre da avalanche de informações em que vivemos hoje.
Já comentei, em outro momento, a minha preocupação com o volume de informações que estamos produzindo. Tendo isso em mente, não é raro eu me perguntar se o meu desejo de escrever um novo livro não é uma forma de colaborar com o soterramento de palavras que a sociedade vive. Será que eu, como indivíduo, não deveria colaborar para o contrário? Ao invés de trabalhar pelo “puro egoísmo”, não seria melhor dedicar meu tempo a uma atividade mais colaborativa?
Uma das consequências da comunicação digital, para o filósofo Byung-chul Han, é a de não gerar diálogo, acelerando o tempo e transformando as interações em tempo-do-Eu. É o tempo que tomamos para nós, e só para nós, em oposição ao tempo do outro, que é o tempo que doamos ao outro como uma dádiva. O tempo do eu, para o filósofo, é o tempo do trabalho e do desempenho; enquanto o tempo do outro é um tempo desacelerado e ineficiente, do ponto de vista neoliberalista.
Quando somo desempenho à minha equação tempo e saúde, tudo começa a se encaixar. Nesse mesmo livro, Byung-chul Han afirma que a informação é uma categoria pós-narrativa — ou seja, acelerada e sem memória. Apenas as narrativas, produzidas com ritmos próprios, são capazes de proporcionar a sensação de conclusão. Uma aceleração não planejada, por outro lado, é capaz de destruir uma narrativa.
Juntando os pedaços, penso que uma saída seria não apenas escrever para produzir mais informações, mas sim usar a escrita para organizar as informações com o intuito de produzir narrativas — sejam elas ficcionais ou não.
No entanto, há ainda uma última questão para resolver (além da observação que a política atual nos furtou até o conceito tão caro de narrativa, mas esse é um assunto para outro momento): o tempo de escrita é um tempo-do-Eu ou um tempo do outro?
Se seguirmos os passos de George Orwell, talvez seja um tempo misto. Se por um lado ele afirma que “todos os escritores são vaidosos, egoístas e preguiçosos”, no mesmo ensaio ele conta que seu ponto de partida para escrever é “sempre um sentimento de partidarismo, um senso de injustiça”.
O tempo da escrita, assim como todo o tempo dedicado na produção artística, é um tempo que começa no eu e termina sendo doado ao outro. Com sorte, esse tempo gerará um diálogo que extrapolará o tempo de uma vida, perdurando enquanto houver humanidade.