Machu Picchu está afundando. Pesquisadores japoneses divulgaram estudo, ainda em 2003, sobre a possibilidade de o complexo deixar de existir em um futuro próximo. As soluções seriam limitar o número de visitantes que passam pela cidadela, além de restringir o acesso a certas áreas e promover um turismo mais consciente. O alarme surtiu certo efeito parcial na primeira década deste século, mas aos poucos foi deixado de lado. O limite de visitantes aumenta paulatinamente (atualmente é de 4040 pessoas diariamente, mil a mais do que há uma década). A velha montanha, joia da coroa do turismo peruano (país cuja economia depende fundamentalmente deste segmento), segue sendo um dos locais mais procurados pelos turistas, em parte por ser um dos destinos mais (não acredito que usarei essa palavra) instagramáveis do mundo.
Sim, as redes sociais não são as únicas culpadas pelo overtourism, o turismo desenfreado que assola pontos específicos mundo afora. Há outras variáveis, inclusive o aquecimento global, como nos casos de Veneza ou do Mar Morto (impossível não reparar na ironia do nome). Há um nicho específico para atrair turistas a esses lugares, o tal “turismo de última chance”, em que pessoas têm a alegada possibilidade de presenciar locais que, muito em breve, não existirão mais (e, ironicamente, colaboram para o fim destes locais, em um movimento tão paradoxal que ultrapassa minha vã filosofia).
O caso de Machu Picchu, entretanto, é claramente reforçado pelas redes. Estive lá em 2018. O peso do meu pé contribuiu para o afundamento da cidadela inca. De lá, trouxe a sensação de que nem todos os turistas estavam interessados na incrível história de mistério e resistência de Machu Picchu: a maior parte dos milhares de turistas que entraram comigo se contentava em enfrentar uma fila enorme, já dentro do complexo, para conseguir a foto com a Huayna Picchu ao fundo. Essa é a imagem que define Machu Picchu no Instagram. O recado parece ser: se você esteve lá e não tirou a foto deste ângulo — sinto muito, mas você não foi a Machu Picchu. O restante do parque arqueológico permanece bem menos concorrido, incluindo a cidade relativamente bem conservada e os trechos que preservam a arquitetura inca. São ricos em história, mas não rendem fotos icônicas.
No Panteão e na Fontana di Trevi, em Roma, locais que até bem pouco tempo eram destinos turísticos gratuitos, há agora a cobrança de uma taxa de acesso. O motivo? Óbvio, restringir a superlotação de turistas, todos ávidos para conseguir a foto perfeita que, não por acaso, é conseguida a partir de um ponto de vista específico, disputado (literalmente) a tapas pelos visitantes. Senti na pele a atmosfera agressiva que impera nos dois pontos. Na Fontana, em particular, é como se alguém fosse me empurrar a qualquer momento fonte adentro, caso minha selfie demorasse mais do que um minuto. O mesmo ocorre em diversos locais pelo mundo afora.
Como especulei em colunas anteriores, se a humanidade passa a ter as mesmas referências, e construímos coletivamente as mesmas memórias afetivas, parece óbvio que um punhado de locais passe a ser mais disputado do que outros na hora de procurar uma viagem. A foto em um ponto turístico passa a ser também uma conquista. Basta fazer uma pesquisa dos destinos turísticos mais instagramáveis. Esqueça o google: as buscas são feitas no próprio Instagram, por meio das hashtags. Influenciadores pautam os milhões de seguidores e geram a, por assim dizer, demanda. É chocante a reduzida oferta de locais mais sugeridos, da Torre Eiffel à Torre de Pisa. Em comum, todos os locais compartilham um ângulo perfeito para selfie.
A fotógrafa belga Natacha de Mahieu registrou essa alienação em um ensaio que denominou de “Teatro da Autenticidade”, no qual revela a superlotação de pontos turísticos pelo mundo, onde “turistas tiravam fotos de si mesmos contra a vista”. Relacionando mídias sociais e mudanças climáticas, Natacha constata que todos estão indo para os mesmos lugares, atrás das mesmas fotos. Ela até cunhou um termo interessantíssimo para o fenômeno: “commodities visuais”. Você pode conferir aqui parte do trabalho dela, e também segui-la no Instagram (@natachademaieu).
Regenerativo como um nativo
Todos os pontos citados até aqui já eram famosos antes do Instagram, embora tenham se encaixado perfeitamente na lógica da rede. Há casos, entretanto, nos quais as mídias atuam de forma a transformar, literalmente do dia para a noite, pacatos pontos turísticos no destino de multidões. É o chamado “turismo de streaming”. Pesquisas indicam que cerca de 70% das pessoas das gerações Z e Millennial admitem buscar viagens para locais que conheceram pelas telas, aí incluídos redes sociais e, especialmente, o streaming. Só para citar dois exemplos: a pequena Iseltwald, na Suíça, vem sendo invadida após servir de cenário para a série sul-coreana “Pousando no amor”, da Netflix. Números da invasão: média de mil turistas por dia, em uma cidade de 400 habitantes; e Dubrovnik, na Croácia, abalroada por fãs de Game of Thrones, não raro vestidos de Daenreys Targaryen pelas ruas, desde que serviu de cenário para a famosa série da HBO. Em comum, são cidades com infraestrutura insuficiente para a multidão que recebem.
Vou resistir à tentação de enfiar aqui uma elaborada reflexão sobre a indústria cultural e seus efeitos sobre a humanidade. Gente muito mais capacitada já falou a respeito. Encerro essa coluna especulando (torcendo?) para que novas tendências se apresentem ao turismo de massa, desde o turismo de experiência, preocupado com a sensação proporcionada, de forma a personalizá-la o mais possível, até o turismo regenerativo, mais interessado em respeitar o local visitado do que com as experiências dos turistas em si. Este último, aliás, insere o turista no cotidiano do lugar visitado quase como se ele fosse um nativo — não mais de costas para a paisagem, mas parte integrante dela. Vivenciei isso em Ollantaytambo, no Peru, e foi provavelmente a mais marcante experiência que tive em uma viagem. O isolamento da cidade é tamanho, somado à consciência da população local, que não resta opção ao turista a não ser passar seus dias como se lá vivesse desde sempre.
Parece utópico, não é mesmo: voltar a respeitar Machu Picchu, recolhendo o lixo e não a superlotando, como faziam os incas? O caso é que eu estou de férias, e talvez os dias com o pé na areia tenham inspirado minha ingenuidade positividade.
Em minha defesa: não tirei nenhuma selfie contra o mar.