Como mediadora de leitura me interessa pensar a relação livro-leitor, e para além dos textos teóricos, busco observar como essa relação se dá na prática, como cada leitor constrói a relação com o livro. Quem foram os primeiros mediadores, se teve ou não acesso aos livros na infância, como foi a relação com os livros na escola. E muito mais como curiosidade de leitora obcecada, gosto de conhecer as manias de outros leitores.
A minha relação-interação com os livros foi mudando ao longo do tempo. Já fui uma leitora mais sistemática e cuidadosa, tinha as minhas próprias regras: nem pensar dobrar folhas, jamais usar a própria orelha como marcador e evitar as marcações. O ideal era que o livro saísse ileso ao final da leitura. Aos poucos fui abandonando certos cuidados, alguns por motivos práticos, pois era mais fácil marcar no próprio livro os trechos que seriam lidos em encontros ou citados em resenha, por exemplo. À medida que as leituras foram aumentando (especialmente as teóricas) facilitava muito voltar aos trechos centrais previamente grifados a lápis ou marca-texto. Ainda não consigo usar caneta esferográfica, prefiro lápis e os marcadores de tons claros, nem tenho coragem de dobrar as pontas das páginas ou usar a orelha como marcador.
Meu intuito não é ditar regras ou comportamentos, penso que os momentos de leitura devem ser de total liberdade, incluindo as manias leitoras que mais ou menos agradam. É mais uma observação (quase antropológica) sobre hábitos e manias leitoras.
Pensando nisso, já “cataloguei” alguns grupos de leitores. Há o time dos desapegados, que marcam o livro sem dó com qualquer caneta bic que estiver à mão, inclusive caneta vermelha. E que, na falta de marcadores adesivos, dobram a pontinha da folha. Do lado oposto, está o grupo que cria formas muito sofisticadas de fichamentos, que fotografam os trechos importantes e salvam em pastas e arquivos digitais. Tudo para manter o livro em estado quase virginal usando, no máximo, marcadores adesivos nas passagens favoritas.
Já os realmente desapegados marcam a página com o que está ao alcance, de clips de metal a embalagens de doces; carregam o livro para todo canto sem capinha protetora; ao final da leitura emprestam; e, algumas vezes, até se desfazem do livro para que seja lido por mais pessoas. São praticamente leitores-anjos promovendo encontros entre livros e pessoas e assim prolongando, em muito, a vida útil de uma obra. Um livro só ganha vida de verdade quando encontra leitores.
Estou em um meio-termo e, de fato, não sei mais sentar para ler sem um lápis na mão. Tenho a impressão que ao grifar ou escrever algo nas margens do texto entro mais na leitura — como se a experiência de leitura não fosse completa sem os grifos, os corações nas partes bonitas, os breves comentários, as interjeições, as perguntas, os códigos inventados. Talvez seja uma tentativa de tomar posse do texto, de sorver ao máximo cada palavra, algo como uma fagocitose — vou engolindo e me nutrindo daquelas palavras. Um canibalismo literário, no bom sentido, que alimenta meu imaginário, energiza e me mantém mais viva.
Sinto prazer em emprestar meus livros (embora já tenha perdido alguns), em parte é um pretexto para poder conversar sobre literatura com outra pessoa. Não nego meu lado acumuladora (já tratei desse tema aqui), e raramente me desfaço de livros. Primeiro, porque tenho muita clareza dos gêneros e temas que me interessam, assim minhas compras são bem direcionadas; e, especialmente, porque vivo de releituras — para os clubes, os encontros, as resenhas e os textos que escrevo. No meu caso, o acúmulo está justificado (está?!), é material de trabalho, de pesquisa, de consulta, mas sobretudo, de amor.
Entendo os que preferem manter o livro em estado quase virginal e aqueles que manipulam e se apropriam do livro sem pudores. A ideia do livro como uma entidade quase sagrada é bastante difundida, eu mesma cultuo muitos autores e livros. E, não por acaso, antigas igrejas hoje abrigam bibliotecas. Eu preservo um respeito imenso pelo livro como objeto, pelo autor e toda a rede de produção, e também pelo caminho que o livro percorre ao sair da prateleira. Percebi que a sacralidade e a magia acontecem nas mãos dos leitores.
Carola Saavedra no livro O Mundo Desdobrável: ensaios para depois do fim, considera o livro um hiperobjeto e lista os inúmeros desdobramentos de uma obra após o lançamento. Um caminho e tanto.
“(…) o livro não apenas como algo que guardamos na estante, mas um acontecimento que inclui uma série de pessoas: autor, editor, revisor, capista, artista que pintou o quadro que serve de imagem de capa. E depois do lançamento: livreiros, os leitores do livro, que, com sorte, podem se estender por décadas, com mais sorte ainda, ainda mais. Todas a leituras e todas as vidas que o livro afetou, transformou, tocou, os amores e ódios que suscitou, as resenhas, os posts de mídias sociais, depois as traduções, tradutores, outras leituras, o livro e tudo o que reverbera na vida do autor, as pessoas que ele encontra, os eventos, as dedicatórias, os amores, às vezes transposições para cinema ou o teatro, as atrizes, os atores, os cenários”.
Outra mania de leitora é fazer listas — de livros desejados, dos livros lidos ano a ano, manter caderninhos com resenhas, impressões das leituras, registros de citações, frases e palavras que chamaram a atenção. Tenho uma gaveta cheia de caderninhos, testei diferentes formas de registro, mas no fim das contas, a velocidade e acúmulo das leituras supera o ato de tomar nota.
Um sistema de registros simples e que vem funcionando é o registro fotográfico no Instagram. Numa olhada rápida na aba de leituras 2022 (fiz o mesmo em 2021), uma ajuda e tanto para a memória, percebi que só li obras contemporâneas e a maioria escrita por mulheres. Esse apanhado das leituras organizadas por anos, mostram nossa mudança (evolução?!) como leitores. Em um passado não muito distante, fui uma leitora quase exclusivamente de clássicos e tinha certo receio da literatura contemporânea. Ainda vou discorrer mais sobre isso, por hora, adianto que ler os contemporâneos é necessário. É ler o nosso tempo, compartilhar de questões que nos afetam, buscar na palavra do outro sentido para o que estamos vivendo.
Ao longo do ano muitas leituras ficaram pelo caminho por inúmeras razões. Uma delas é a liberdade de abandonar leituras, ou porque não agradaram ou porque chegaram no momento errado. Minha liberdade está atrelada ao privilégio de construir uma biblioteca própria, e assim poder experimentar, borboletear pelas estantes, pousando ora em um livro ora em outro. Lendo uma orelha aqui, um prefácio ali, relendo um grifo acolá, em um movimento sem nenhuma lógica, gozando da felicidade clandestina de Clarice. Felizmente não sou a menina que sofre horrores para ter acesso ao livro dos sonhos. Tenho a possibilidade de circular livremente entre os meus livros-sonhados-desejados sem prazos de devolução. Como leitora privilegiada, procuro compartilhar um pouco do que vivo através dos livros nos clubes e oficinas de leitura.
A leitura recente de Carola Saavedra e suas reflexões sobre os rumos da literatura me tocou muito. A autora aborda a redefinição dos cânones e gêneros literários, a escrita do corpo, do coletivo, do sonho, da oralidade. E provoca o leitor a buscar uma escrita (e leitura) que expanda, que ajude a pensar e viver novas realidades.
“É nesse jogo de sentidos desdobráveis que se abre espaço, as pequenas frestas, para que surjam outros mundos. Soluções ainda não pensadas, ou que sempre estiveram aí, mundos que, a partir das palavras que recobrem o mistério do presente, apontam para outros passados e futuros possíveis. Não por acaso, nas culturas pré-modernas, a figura mais próxima do escritor ou do artista era/é o xamã, aquele que se deixava transpassar pelo mistério das coisas”.