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books on shelves

Leitores do mundo e suas bibliotecas mutantes

por Patricia Dias

Para a minha surpresa, essa é a décima coluna Leitura e Alento — não imaginava chegar tão longe. Pensei que em pouco tempo esgotaria meu estoque de citações e reflexões livrescas. Engano meu; as leituras e trocas nos clubes e oficinas têm me mostrado que ainda há muito assunto a ser explorado — assim como não faltam livros a serem desbravados, desejados, abandonados, relidos. 

Seremos para sempre leitores do mundo com suas respectivas bibliotecas mutantes.

Mutante sim, pois uma biblioteca nos acompanha, cresce com a gente, vai tomando forma a partir de nossas leituras, experiências, interesses, acompanhando as distintas fases da vida. Ao olhar minha estante, vejo uma biblioteca pulsante. Admirando os diferentes títulos na prateleira, sou capaz de sentir novamente a mesma emoção que uma determinada leitura me causou. A nostalgia toma conta, e posso me lembrar de detalhes da minha rotina enquanto realizava tal leitura (como onde morava ou estudava), também voltam à mente sensações, sons, odores… Uma passada de olhos pelas lombadas e bate forte a vontade de fazer releituras.

Gosto de relembrar o trajeto de cada livro — quando e onde foi comprado; indicação de quem; lido ou não lido — e a maioria guarda histórias paralelas que os tornam ainda mais especiais. Tem coleção de contos de fadas da minha infância, livro que ganhei da professora da 3a série, livro-autografado, livro-raridade, livro-obra de arte, livro com dedicatória curiosa. Livros que marcaram determinadas fases, que me abriram um mundo novo, livros muito marcados — por grifos e lágrimas. Nas prateleiras, “alta” e “baixa” literatura se encontram sem preconceitos e livros teóricos se tornam livros de cabeceira. Poesia e literatura infantil ocupam boa parte da estante, obras que me conectam com o meu lado melhor.

Contabilizando os lidos e os não lidos, é impossível evitar um certo remorso em relação aos tantos livros na fila de leituras. Gosto de saber que eles estão ali ao alcance da mão, só esperando um convite, que pode ser um curso, uma roda de leitura, uma indicação, um desejo ou uma cisma inexplicável.

Outro motivo de remorso são as várias edições de uma mesma obra. Tenho me esforçado para controlar o ímpeto de adquirir edições diferentes de um mesmo livro, não um livro qualquer, lógico, mas os favoritos da vida. As prateleiras exclusivas para Jane Austen e Lewis Carroll atestam minha falta de controle. Sou uma compulsiva em processo de recuperação, pois com os estudos, a rede de autores e livros favoritos aumentou muito, e é preciso investir (mais racionalmente) nos meus objetos de pesquisa.

Na infância, quando aprendi que o coletivo de livros era biblioteca, a minha ideia era uma sala recoberta de estantes recheadas de livros. Uma coleção fechada. Com Borges aprendi que as bibliotecas são o paraíso na terra. Espaços quase sagrados, com suas imensas estantes e incontáveis volumes que constituem o registro da humanidade. A ideia de um livro de areia, um livro infinito, sempre em transformação, me agrada porque vem lembrar que os livros na vida real também se multiplicam numa velocidade que foge ao nosso controle e, por mais que desejemos, não poderemos ler nem uma ínfima parte deles. Há que se conformar e conter a ansiedade. 

Falando em areia, nós leitores, somos um grãozinho de areia frente ao mar de obras grandiosas já publicadas. De muitas formas, a Literatura nos coloca diante da nossa insignificância. Embora como leitores sejamos tomados pela fome-desejo de leitura, nossa existência acabará enquanto as grandes obras permanecerão. 

Ítalo Calvino também acredita que a biblioteca é um organismo vivo. Para o autor, uma biblioteca pessoal deve reunir os livros que lemos e nos marcaram e os livros que ainda vamos ler, e que possivelmente, irão nos marcar. Tudo que já foi escrito e o que ainda será, como na Biblioteca de Babel. O mais importante, segundo Calvino, é manter espaço — físico e mental — para descobertas e surpresas ocasionais. 

Umberto Eco também fala dos livros não lidos que acumulamos, e os considera até mais importantes do que os livros lidos. Parece desculpa para leitores acumuladores, mas a concepção é interessante: ao cultivar uma anti-biblioteca nos mantemos em movimento, buscando informação e conhecimento. Nesse sentido, as experiências futuras de leitura serão sempre mais importantes do que as leituras concluídas — uma visão inspiradora e otimista, confirmando que o grande prazer está na busca, na jornada de autoformação leitora.

Acompanhar o progresso de uma biblioteca pessoal é muito prazeroso. Ver as estantes aos poucos ganhando vida, prateleiras cheias, as lombadas coloridas. Gastar o tempo pensando em formas de classificação ou de disposição dos títulos. Olhar para os livros enfileirados ou empilhados nas prateleiras gera um conforto quase instantâneo — uma sensação de que jamais estarei sozinha ou sem ocupação. Inclusive listei alguns títulos que irão me acompanhar na velhice, entre eles, Guerra e Paz (menos pelo Tolstói e mais pelo Charlie Brown). 

Sei que jamais lerei tudo o que desejo, mas prometo morrer tentando.


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