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Dúvida crônica (ou fuga nº 2)

1.

É real-oficial: me sento para escrever uma crônica. Tem toda a pompa nisso, no sentar-se de frente pra janela, pra pegar uma fresca e ficar de olho no movimento, as três horas de preparação — uma no Instagram e duas no YouTube —, deixar o caderno de lado pra escrever no teclado, mas manter as canetas por perto pra fazer o clack clack da reflexão.

Ainda insegura-confiante-deprimida (efeito da TPM de ovulação, confirmo no app), desejo ler crônicas. Procrastinadora, eu? Não, nunca, jamais! Estou só me preparando para me preparar para me preparar para. Cada nova ideia é como uma chave — e se eu juntar todas as que tive só em 2022, já tenho um belo molho dourado.

2.

Meu problema é da ordem dos gêneros literários.

Antes de afirmar “curto escrever crônicas e fds” (o Instagram me ensinou que a nova geração não lê fds como fim de semana), sou enterrada pelas máximas “só romances têm peso literário” e “crônica é um gênero brasileiro menor”. Aí eu “de que adianta ficar escrevendo esses textos diminutivos-paliativos, só pra dizer que estou escrevendo?” et cetera. 

3.

Apesar de ser bastante comum uma mãe panda dar à luz a dois pandinhas, ela só cuida de um, deixando o outro morrer. Os cuidadores não sabem ao certo porque isso acontece — acreditam que a mãe supõe que não tem leite suficiente para os dois —, mas encontraram uma maneira de ludibriar a mãe a cuidar dos dois filhotes: enquanto um fica na incubadora, o outro recebe os cuidados da mãe. Os cuidadores fazem essas trocas dez vezes por dia.

4.

Minha janela tem uma tela de proteção, para os mosquitos não entrarem, mas digamos que há uma fresta generosa para eles passarem. O pernilongo passou quinze, talvez vinte minutos, se batendo no vidro sem saber de onde vinha o vento que o empurrava. Quando finalmente passou, foi pra longe, em direção à cerca elétrica.

5.

O desejo de definição, de se identificar como parte de determinado grupo que realiza determinada coisa, esse é um troço que me persegue. Não consigo me ver como “sou escritora de”, apenas “sou escritora” e ponto. Tem dias que tanto faz se eu estiver escrevendo uma lista de compras ou uma narrativa, só me importa o ato da escrita. É por isso que escrevo tanta coisa diferente.

6.

O pernilongo voltou. Talvez não seja o mesmo.

7.

Mas aí o “fazer parte de” pesa, vem o desejo de ser reconhecida. Aí começo a apertar um corpete em cada texto, colocá-lo em uma caixinha, quero defini-lo, nichá-lo, torná-lo googleável para que plim!, o mundo possa engoli-lo como uma dancinha do TikTok.

Assim tudo vira um teste, um ensaio, uma preparação para preparação para preparação para.

8.

Com um diploma de jornalismo enterrado na memória, ser cronista seria um baita clichê. Eu poderia falar sobre política, sobre a guerra na Ucrânia, analisar relacionamentos, livros e filmes na vibe rasa da Martha Medeiros ou na vibe irônica-louca da Tati Bernardi, poderia virar youtuber e falar ao invés de escrever. 

É muito difícil escolher enquanto os aviões voam pra um lado e os pássaros para o outro.

9.

A tal fonte de expectativas. Há chance em ser mistura, em não ser em definitivo? Em ser tudo junto ou então em ser um tanto de cada vez? E se eu deixar de ser quem fui, será que voltarei a ser alguém? E será que a gente deixa de ser?

10.

Eu curto escrever textos curtos (foi de propósito), fragmentados, aleatórios. Se você chegou até aqui, vou te dar um prêmio-confissão: passei os últimos cinco anos estudando estruturas narrativas para poder estraçalhá-las. Sou prima-irmã do caos.

11.

Agora que refrescou, ia bem um café com pão de queijo.

12.

Agradar a mim. Agradar o mundo. Ganhar dinheiro. Agradar a mim. Agradar o mundo. Ganhar dinheiro. Agradar a mim. Agradar o mundo. Ganhar dinheiro.

Só eu que não vejo ou não tem mesmo intercessão?

13.

Se eu me levantar agora pra caminhar, há pelo menos três possibilidades imediatas:

  • Tenho uma nova ideia-vislumbre para escrever;
  • Alguém fala comigo e eu me perco o fio da meada;
  • Volto pra casa com pão de queijo fresco.

14.

Certos desejos são só fachada mesmo. 

15.

A internet está cheia de gente com dúvidas crônicas como eu. Escrevendo, criando, buscando meios para, projetando seus nomes na rede. Nos assusta também, esse mar de tudo. Aumenta a vontade de se definir, de nichar o que a gente faz. De ter controle sobre quem lê, sobre o estilo, sobre a voz. 

Não vou mentir pra você: estou morrendo de medo. Se por um lado estou buscando a liberdade na escrita, por outro me sinto oprimida pelos tempos que vivemos. Mas é contra esses tempos que talvez eu tenha cansado de definir. Tô querendo mesmo é arregaçar.

16. (pós-escrito)

Pensei em não publicar essa cisma, porque já sou outra, toda diferente da que escreveu esse texto há 22 dias. Mas reconhecer-se outra é parte de encarar a dúvida. Então, ao invés de esconder minhas contradições, eu as revelo, na esperança de que o turbilhão daqui bata com o turbilhão daí.

Quando se trata de escrita, toda dúvida gera um teste, e todo teste é um passo no processo criativo. Por aqui, a dúvida deu a volta e me mostrou um caminho criativo que há muito, muito tempo, eu havia deixado para trás.


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