O filósofo Enrique Dussel (1934-2023), é uma das vozes mais influentes na crítica ao eurocentrismo na filosofia. Seu trabalho é marcado por uma perspectiva decolonial, que busca questionar e desmantelar as estruturas de poder e conhecimento que têm historicamente marginalizado os povos do Sul Global.
No capítulo intitulado “Meditações Anticartesianas sobre a Origem do Antidiscurso Filosófico da Modernidade”, do livro “Epistemologias do Sul”, publicado em 2013 e organizado por Boaventura Sousa Santos e Maria Paula Meneses, Dussel nos convida a repensar o papel de René Descartes (1596-1650) na formação da modernidade, mostrando como o pensamento cartesiano, longe de ser um marco universal de racionalidade, reforçou uma estrutura de poder eurocêntrica que continua a ecoar até os dias de hoje.
Neste texto, exploramos as ideias centrais do capítulo citado, onde Dussel, destaca as implicações coloniais do pensamento cartesiano, e propõe uma decolonização do pensamento filosófico contemporâneo.
Descartes: o consolidador de um sistema de poder
A narrativa dominante da história da filosofia ocidental frequentemente coloca René Descartes no pedestal de “pai da modernidade”, marcando o início de uma era de racionalidade e progresso universal. Enrique Dussel, no entanto, nos convida a olhar para essa história com outros olhos. Para ele, a modernidade não começa exclusivamente com Descartes, mas está profundamente entrelaçada com um processo histórico mais amplo: a colonialidade.
A colonialidade, segundo Dussel, é uma estrutura de poder que precede Descartes e que se consolidou com a expansão colonial europeia a partir do século XV. Ao “descobrir” as Américas e submeter seus povos à dominação, a Europa, ao expandir “seus” territórios, também impôs uma nova ordem mundial onde a racionalidade europeia foi colocada no centro, desvalorizando e marginalizando outros modos de pensar e viver.
Nesse contexto, Dussel sugere que Descartes não é o iniciador da modernidade, mas sim um consolidar de um segundo momento dessa modernidade, já fortemente marcado pela colonialidade. O pensamento cartesiano, com sua ênfase na racionalidade e na centralidade do sujeito europeu, legitima a exclusão e a subordinação dos povos colonizados, ao mesmo tempo em que ignora as epistemologias e culturas que existem fora do quadro de referência europeu.
Um dos conceitos centrais na análise de Dussel é o de exterioridade que, na prática, refere-se às culturas, saberes e modos de existência que foram colocados fora dos limites do que a modernidade europeia considera como legítimo ou verdadeiro.
No pensamento cartesiano, essa exterioridade é sistematicamente ocultada. Os povos colonizados não são vistos como sujeitos plenos, mas como objetos a serem estudados, dominados ou “civilizados” de acordo com normas, padrões e condutas eurocêntricas. Dessa forma, na visão do autor, Descartes contribui para a criação de um sistema de conhecimento que marginaliza e desumaniza aqueles que estão fora da esfera europeia.
O famoso cogito cartesiano, cogito, ergo sum (penso, logo existo), é o exemplo máximo dessa exclusão. Para Dussel, o sujeito pensante cartesiano é, na verdade, um sujeito europeu, masculino e colonizador. Esse sujeito, ao se colocar como o único centro de racionalidade, exclui e desumaniza todos aqueles que não se encaixam nesse modelo. Em outras palavras, a filosofia cartesiana, ao universalizar uma visão particular da racionalidade, contribui para legitimar a dominação colonial e a exclusão epistêmica dos povos não europeus.
Dussel vai além e realiza uma crítica à abstração do corpo e da materialidade no pensamento cartesiano. Segundo o filósofo argentino, ao privilegiar a mente como fonte do conhecimento e da existência, Descartes desconsidera as realidades corporais dos sujeitos, especialmente dos sujeitos coloniais. Essa abstração abre caminho para que os corpos dos colonizados sejam mercantilizados e oprimidos, sendo vistos apenas como objetos ou recursos a serem explorados e não como seres humanos completos, com suas próprias subjetividades e saberes.
Em outras palavras, para Dussel, essa mercantilização é uma das consequências mais nefastas do pensamento cartesiano, pois permite que os corpos dos povos colonizados sejam transformados em mercadorias no sistema econômico colonial. Assim, a filosofia moderna, ao desumanizar esses corpos, reforça um sistema onde a dignidade e a subjetividade dos colonizados são sistematicamente negadas.
Antidiscurso Filosófico: a resistência à hegemonia eurocêntrica
Em resposta a essa hegemonia, Dussel nos apresenta o conceito de antidiscurso filosófico. Esse termo é empregado pelo autor para referir-se às tradições de pensamento que resistem à dominação da modernidade eurocêntrica, oferecendo perspectivas alternativas e subversivas que desafiam a lógica colonial. Exemplos dados pelo autor desses antidiscurso são as figuras de Bartolomé de Las Casas (1484-1566) e Filipe Guamán Poma de Ayala (1535-1616).
O primeiro, um frade dominicano espanhol, é amplamente reconhecido como uma das primeiras e mais importantes vozes na defesa dos direitos dos povos indígenas nas Américas. Inicialmente envolvido nas atividades coloniais, Las Casas passou por uma transformação radical ao perceber a injustiça e a crueldade infligidas aos indígenas pelos colonizadores. Sua obra se tornou um instrumento de crítica à ideologia colonial, que justificava a exploração e a opressão dos indígenas em nome da “civilização” e do cristianismo.
Las Casas argumentava que a imposição da fé cristã e das estruturas coloniais pela força era moralmente errada e uma negação da humanidade e da dignidade dos povos indígenas. Las Casas propôs que os indígenas, assim como os europeus, possuíam uma alma racional e deveriam ser tratados com o mesmo respeito e consideração. O frade também refutou a ideia de que a cultura ocidental era superior, defendendo que as civilizações indígenas tinham suas próprias formas legítimas de organização social, conhecimento e espiritualidade.
Ao longo de sua vida, Las Casas lutou para melhorar as condições dos indígenas, conseguindo influenciar a promulgação das Leis Novas de 1542, que buscavam limitar os abusos cometidos contra os povos indígenas. No entanto, ele enfrentou forte resistência dos colonizadores e, em muitos casos, suas reformas foram ignoradas ou revertidas. Mesmo assim, sua defesa dos direitos dos indígenas deixou um legado como um dos primeiros críticos da modernidade emergente, especialmente no que se refere à sua dimensão colonial.
O segundo, foi cronista e pensador indígena do Peru colonial. Sua obra “Nueva Corónica y Buen Gobierno” é uma crítica detalhada à opressão dos povos indígenas pelos espanhóis. Escrito entre 1583 e 1612, o texto de Guamán Poma oferece uma visão única da colonização, pois é uma das poucas obras que narra a história da conquista do ponto de vista dos próprios indígenas.
Guamán Poma descreve com precisão os abusos e as injustiças cometidas pelos colonizadores espanhóis, denunciando a exploração econômica, a corrupção das autoridades coloniais e a degradação cultural e espiritual dos povos indígenas. O pensador peruano também propõe um modelo alternativo de governança, baseado nos princípios e nas práticas das sociedades indígenas antes da chegada dos europeus.
A obra de Guamán Poma é notável por seu conteúdo e por sua forma: um manuscrito ilustrado com mais de mil páginas que combina texto e imagem para transmitir sua mensagem de resistência e crítica, que documenta a opressão, mas também propõe uma ética e uma política enraizadas nas tradições indígenas, oferecendo uma alternativa radical à modernidade colonial.
Voltando à Dussel, tanto Las Casas quanto Guamán Poma operam a partir da exterioridade radical da modernidade. Para o pensador argentino, eles representam vozes que foram excluídas da narrativa dominante, mas que ainda hoje desafiam e questionam a centralidade do sujeito europeu, propondo novas formas de entender o mundo. Essas figuras, na visão de Dussel, resistem à colonização física, mas também à colonização do conhecimento, criando um espaço para epistemologias alternativas.
Decolonização do pensamento: um chamado à Filosofia Contemporânea
A decolonização do pensamento filosófico, como proposto por Dussel, exige que reconheçamos e valorizemos essas vozes e experiências. Las Casas e Guamán Poma são exemplos de como o antidiscurso filosófico pode reconfigurar o conhecimento e promover uma filosofia mais inclusiva e justa, e que, por conseguinte, reflete a pluralidade de perspectivas e saberes do mundo.
Dussel conclui seu texto com uma chamada à decolonização do pensamento filosófico. Para o autor, a modernidade precisa ser reavaliada a partir das perspectivas daqueles que foram historicamente excluídos. Isso implica, entre outras coisas, reconhecer as limitações da filosofia moderna e abrir espaço para um diálogo intercultural genuíno, onde diferentes epistemologias possam ser valorizadas e integradas.
Para Dussel, superar as limitações da modernidade cartesiana requer uma reconfiguração radical dos parâmetros do conhecimento filosófico, ou seja, reconhecer a multiplicidade de vozes e experiências que compõem a humanidade e que foram silenciadas pela tradição filosófica eurocêntrica. Somente ao valorizar essa diversidade epistêmica será possível construir uma filosofia que seja relevante para todos, independentemente de suas origens culturais e históricas.
Por fim, Dussel nos desafia a imaginar uma filosofia que, ao invés de excluir, abraça a pluralidade e a complexidade do mundo. Uma filosofia que, em vez de reforçar a dominação, busca a justiça e a inclusão. Uma filosofia que não apenas pensa, mas também sente, reconhece e valoriza a totalidade da experiência humana.