Lambrequim logo newsletter

a newsletter de cultura e tecnologia da Têmpora Criativa

scribbles on wall

Entre exumar e parir palavras

O petiz atiçou a fuzarca no alpendre em elãs frívolos, não obstante a azáfama grassante na alcova já me tolhesse intentos sobremaneira. Plangi-me em ganas de abalroar-lhe aos tabefes. Pegado a mim, cenho franzido, o basbaque fez-me o obséquio de inculcar balelas ledas, pueris galhofas que deveras me pejaram ante os convivas. De sorte, tão açodadas caturrices hão mister símile esbregue.

O trecho acima (que levei cerca de meia hora para escrever) é um “In memoriam léxico. Dedico aqui um salve às palavras mortas por faltade uso. Resignemo-nos: é cada dia mais improvável que debalde saia do dicionário para ocupar espaço no post da influenciadora à beira da piscina em uma selfie (leia-se selfie). Ainda que o vocábulo que ressuscitei sirva bem à inutilidade do ato descrito, é mais provável que a palavra em inglês acima citada é que estará, muito em breve, no dicionário da língua portuguesa, celebrada pelos falantes, enquanto debalde talvez debande para o uso in-útil e esporádico de poetas ou linguistas. 

Estrangeirismos, assimilação de gírias e variações são comuns e até necessários a um idioma – quem ignora que a língua é viva e, por consequência, está em constante mutação? Gaslighting, por exemplo, termo que desde os anos 1960 nomeia o ato de manipular alguém psicologicamente, recebeu do dicionário norte-americano Merriam-Webster o título de palavra do ano em 2022. A condecoração veio após um aumento de 1.740% nas buscas pelo termo no site deles, ou seja, a palavra já havia ocupado a cabeça das pessoas antes de ganhar vez no dicionário. Antes de existir a palavra, alguém que se sentisse manipulado psicologicamente teria de recorrer a frases elaboradas e usar palavras aproximadas para explicar sua condição ou compreender a realidade. Na aldeia globalizada, gaslighting em português será gaslighting mesmo. A pronúncia fica ao gosto do falante: em breve, num pai-dos-burros perto de você!

A mais recente edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, atualizada pela Academia Brasileira de Letras em 2021, assimilou cerca de mil novos termos à língua portuguesa falada no país (que, na opinião deste escriba, devia se chamar “idioma brasileiro” #devolvanossoouro). Dentre as novas palavras incorporadas, destaco feminicídio e ciberataque – vocábulos que, infelizmente, estão presentes no tenso cotidiano das pessoas.

Biblioteca dentro da palavra

Se o inglês é hoje o principal fornecedor de palavras ao português brasileiro (graças à internet, às redes sociais, às indústrias do cinema e de games, etc.), em outros tempos foi o francês, no que chamamos de galicismo. Os falantes brasileiros da virada para o século XX deleitavam-se com seus abajures e maquiagens, suas vitrines e pochetes, seus purês e maioneses. Buquê, réveillon, creche, ateliê, garagem: os exemplos são inúmeros – e o mesmo se pode dizer de tantas outras línguas que influenciaram o português via uso cotidiano. Ao receber povos imigrantes, nosso idioma assimilou também suas palavras.

O oposto disso, ou seja, o esquecimento, a falta de uso, é o que ocasiona a lenta morte das palavras. Geração após geração (e essa tendência acelera nas últimas décadas), falantes param de usar tais ou quais vocábulos, escritores deixam de utilizá-los em livros, acadêmicos os ignoram em teses e dissertações. Como tem de ser, aliás: celebrar os préstimos das palavras mortas, sem embalsamá-las. O corpo do idioma vivo renovando células. Há palavras que estão destinadas a sumir pelo simples fato de que os objetos que nomeavam também sumiram: adeus, tílburi; até nunca mais, catre; vá em paz, mátula. Outras palavras nomeavam sentimentos tão exclusivos a certas épocas que já não nos servem mais, como o medieval frenesi ou a acédia nos mosteiros d’antanho. Outras, ainda, são belíssimos exemplos da evolução da língua, não é mesmo vossemecê? – que virou vosmecê e hoje é apenas você. Cês concordam que não tem como controlar um idioma vivo, né?

Cada palavra traz dentro de si um rastro (secular? milenar?) que demandaria uma biblioteca inteira para decodificar. Pense em salário: desde a cota de sal paga aos soldados da Roma Antiga (o salarium); passando pelas barras de cloreto de sódio que podiam ser trocadas por outras coisas; e pela constituição do pagamento em dinheiro, mantendo o vocábulo para preservar a ideia consagrada; até chegar à definição contemporânea de remuneração a serviço prestado: lá está o vestígio do original, como um fóssil etimológico.

Seja ao nomear o mundo ao nosso redor, seja para explicar o que sentimos, é através dos signos contidos nas palavras que distinguimos a vida. Caso não tenha ficado claro, sou um colecionador de vocábulos. Velhos ou novos, longuíssimos ou curtos, exóticos ou nativos, coloquiais ou rebuscados. Assimilar uma nova palavra é como dar corda no relógio do tempo, mesmo que a esqueçamos na semana seguinte. Como colecionador, posso entender o quão irresistivelmente desnecessário é fazer uma lista das 100 palavras mais bonitas da língua portuguesa, como acaba de fazer a Revista Bula – especialmente quando essa lista começa com alabastro e termina com zênite.

Não careço de convencer ninguém a ir tão longe. Entrementes, a batelada de lexemas que aglomerei até esse parágrafo há de instar vossemecê a eleger uma palavra preferida. A minha, hoje, é sílfide, alguns pontos percentuais à frente de prosopopeia e verve. Ficam valendo até 23h59 do dia corrente.

Amanhã, porém, minha palavra preferida mudará. Provavelmente escolherei debalde. Ou selfie.


Publicado

em

por