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Escritor versus criador

Certa vez, recebi a indicação de uma vaga de redatora e lá fui eu, certa de que seria avaliada pelos meus textos de 600 palavras ou mais. Intrigado, o entrevistador olhou meu currículo, cheio de links para sites e perguntou onde estava o meu portfólio. Está nos sites, respondi. Foi só então que ele me explicou que a agência estava em busca de um redator publicitário, desses que escrevem frases de efeito para anúncios, e não de uma redatora jornalística.

(Aliás, desde esse episódio, aceitei minha condição de eterna desempregada).

Conceitos. Ao mesmo tempo que passamos os dias pedindo ao Google explicações para eles, nos deparamos com inversões tão velozes quanto a era digital. Como considero válido ter ares de ignorância, mantenho uma dose de ignorância no meu repertório e não pergunto tudo ao moderno “pai dos burros”.

Assumir que sou escritora a ponto de ter coragem de declarar isso sem titubear a qualquer um que pergunte “qual é a sua profissão?” foi uma barreira e tanto que precisei derrubar. A primeira coisa que alguém deve pensar quando digo que escrevo roteiros de histórias em quadrinhos, ministro oficinas de escrita criativa, ajudo outras pessoas a escreverem suas histórias e ainda publico meus livros é: como você ganha dinheiro? (talvez seguido de: essa mulher deve ser sustentada por alguém).

Não estou aqui para reinventar a roda nem explicar a ninguém como ganhar dinheiro escrevendo (procure no Google, ele deve te responder). No entanto, se você quiser ser escritor e fazer da escrita sua fonte de renda sem ter um emprego fixo, com certeza passará por algo chamado freela — também conhecido como job, bico ou exploração mal remunerada do seu tempo.

Para quem não sabe, nessa categoria de trabalho alguém paga para o escritor produzir um ou mais textos por encomenda — desde narrativas longas até posts para redes sociais. Em alguns casos, o contratante deixa o escritor assinar; em outros, pede para que ele abra mão da autoria, para poder atribuir o texto a outra pessoa.

Parece ótimo, não? Ser pago para escrever. Não era isso que você queria; escrever, escrever, escrever? Sim e não.

O trabalho do escritor, como eu o compreendo, está longe de ser o mesmo trabalho de um criativo. Enquanto o escritor é alguém que reflete sobre o mundo com o intuito de criar obras de arte, o criativo é apenas alguém que usa a criatividade como ferramenta de trabalho. Mesmo sendo atividades correlatas, o conceito fluído de “criador de conteúdos” que a internet nos presenteou banaliza a criação artística, como se todos os escritores e artistas, necessariamente, tivessem que vestir a camisa dos “novos criativos”.

Escolher uma profissão — que, no caso da escrita, prefiro chamar de ofício — no século XXI não é tarefa fácil. Com a previsão de que cada um de nós terá que mudar de área de dez em dez anos, nenhuma profissão é sinônimo de garantia. No entanto, não haveria um limite para se sujeitar a liquidez das áreas de atuação, especialmente em uma realidade na qual somos contratados sem vínculos empregatícios para desempenhar uma determinada função?

Conceitos para enrijecer, conceitos para alargar. Quando nos dispomos a dançar a dança, muitos se perguntarão “mas que escolha nós temos?”. Na Sociedade do Cansaço identificada por Byung-chul Han (sim, ele mais uma vez), na qual somos todos obrigados a desempenhar e nos explorar cada vez mais, a chave é conhecer a nós mesmos para definirmos até onde estamos dispostos a ir para conseguir o que queremos.

E aqui cabe uma constatação, algo que talvez eu tenha demorado muito tempo para compreender: só porque escrevo, não significa posso escrever qualquer coisa. Trabalhar com escrita nos dá uma infinidade de possibilidades, mas isso não nos obriga a aceitar todos os freelas que aparecem e muito menos todas as exigências dos nossos contratantes. Conhecer o que querermos escrever e como queremos trabalhar é essencial para seguirmos em frente com o nosso ofício de escritores.

Se você me perguntar se sou uma criadora, eu direi que não — ao menos não nesse conceito banalizado de hoje. Me considero mais uma exploradora, uma flâneur contemporânea, que absorve informações de todos os cantos e cria narrativas com elas.


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