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Eu sou eu e a minha circunstância

Essa famosa frase do filósofo espanhol Ortega y Gasset captura a essência do que ele considera ser a realidade da existência humana. 

Em seu livro Meditação da técnica, Ortega y Gasset desenvolve essa ideia, propondo uma visão da vida que transcende a mera consciência fenomenológica ou a passiva recepção dos estímulos externos. Para ele, viver é, fundamentalmente, um processo dinâmico de interação com o ambiente, um contínuo dar e receber no qual somos simultaneamente criadores e criaturas das nossas circunstâncias.

Assim, ao investigar as implicações desta perspectiva para a técnica, Ortega y Gasset não apenas redefine a relação do homem com o mundo, mas também examina como a tecnologia pode ser vista como extensão da capacidade humana de atuar sobre e transformar suas circunstâncias. 

Para Ortega y Gasset, a técnica não é meramente um conjunto de habilidades manuais ou intelectuais, mas uma manifestação fundamental do que significa ser humano, ou seja, a capacidade técnica é inerente e distintiva da condição humana uma vez que, diferentemente de outros animais, o homem não apenas utiliza, mas cria técnicas.

A habilidade de projetar e implementar técnicas é, para Ortega y Gasset, a marca distintiva do ser humano. Neste sentido, a técnica é vista como um elemento fundamental da identidade humana, não somente como ferramentas externas que são usadas, mas como uma expressão da própria natureza humana. A técnica, então, não é apenas um meio para atingir um fim, mas um aspecto intrínseco que diferencia o homem dos outros seres vivos. 

Uma Pequena Biografia de Ortega y Gasset

José Ortega y Gasset (1883-1955) foi um dos mais influentes filósofos espanhóis do século XX. Nascido em Madrid, estudou na universidade que leva o mesmo nome da cidade e mais tarde na Universidade de Leipzig, na Alemanha, onde foi profundamente influenciado pelo idealismo alemão, especialmente por Husserl e o movimento fenomenológico.

Após retornar à Espanha, Ortega y Gasset se envolveu ativamente no jornalismo e na política, fundando a Revista de Occidente em 1923, que se tornou um importante veículo para as ideias modernistas na Espanha. Seu pensamento é caracterizado pela integração de elementos da filosofia europeia com uma reflexão profunda sobre a identidade, a cultura e a política espanhola.

O livro Meditação da técnica é uma obra que reflete o interesse de Ortega y Gasset pelos impactos da tecnologia, um tema recorrente na atual Filosofia da Tecnologia (FdT). Publicado no contexto da Guerra Civil Espanhola e do tumulto europeu que antecedeu a Segunda Guerra Mundial, períodos em que as questões sobre a técnica e a modernidade eram especialmente pertinentes. Preocupado com os rumos que a Europa estava tomando — marcados pelo aumento do autoritarismo e pelo uso de novas tecnologias para fins destrutivos —, propôs uma reflexão sobre como a técnica poderia ser harmonizada com os valores humanos fundamentais para evitar sua degeneração em meras ferramentas de dominação.

A Natureza Técnica do Homem

Ortega y Gasset argumenta que as necessidades humanas, como alimentação e autoproteção, são originadas de uma necessidade básica: o desejo de viver. Ele destaca que esta é uma escolha subjetiva, já que, em certas condições, alguns preferem a morte. 

A necessidade de viver não lhe é imposta à força, como lhe é imposto à matéria não poder aniquilar-se. A vida — necessidade das necessidades — é necessária apenas num sentido subjetivo; simplesmente porque o homem decide  autocraticamente viver. É a necessidade criada por um ato de vontade, ato cujo sentido e origem prosseguiremos olhando de viés e de que partimos como de um fato bruto. Seja lá por que razão, acontece que o homem costuma ter um grande empenho em sobreviver, em estar no mundo, apesar de ser o único ente conhecido que tem a faculdade — ontológica ou metafisicamente tão estranha, tão paradoxal, tão conturbada — de poder aniquilar-se e deixar de estar aí, no mundo. (ORTEGA Y GASSET, 1963, p. 9). 

Em sua meditação Ortega y Gasset, afirma que o ser humano é um “ser técnico”. Essa visão surge da observação de que, ao contrário de outros animais que se adaptam ao meio através de uma evolução biológica, o ser humano cria técnicas para modificar o ambiente (natureza) ao seu favor. Este processo de transformação não é apenas uma questão de sobrevivência, mas um traço distintivo da condição humana que nos separa dos outros animais e molda nossa relação com o mundo.

Na concepção de naturezacomo o ambiente ao redor do ser humano, este tem a capacidade de criar algo que não existia anteriormente, por conseguinte, pode interromper suas atividades rotineiras para substituí-las por novas, demonstrando sua habilidade de se distanciar temporariamente de suas necessidades vitais. Diferentemente dos animais, a vida humana transcende as necessidades orgânicas e inclui a capacidade de se auto-refletir e inovar. Assim, o homem pode inventar métodos para obter recursos ausentes na natureza, que são essenciais para ele.

Pois bem, estes são os atos técnicos, específicos do homem. O conjunto deles é a técnica, que podemos, desde logo, definir como a reforma que o homem impõe à natureza em vista da satisfação de suas necessidades. Estas, vimos, eram  imposições da natureza ao homem. O homem responde impondo por sua vez uma mudança à natureza. É, pois, a técnica, a reação enérgica contra a natureza ou circunstância que leva a criar entre esta e o homem uma nova natureza posta sobre aquela, uma sobrenatureza. Anote-se, portanto: a técnica não é o que o homem faz para satisfazer suas necessidades. Esta expressão é equívoca e valeria também para o repertório biológico dos atos animais. A técnica é a reforma da natureza, dessa natureza que nos faz necessitados e indigentes, reforma em sentido tal que as necessidades ficam, a ser possível, anuladas por deixar de ser problema sua satisfação. (ORTEGA Y GASSET, 1963, p. 14). 

Segundo o autor, a técnica elimina as necessidades ao dissipar a sensação de carência, problema e angústia, minimizando também o acaso e o esforço humano. Contrariamente à ideia de que se trata de uma adaptação do indivíduo ao ambiente, Ortega y Gasset vê a técnica como a adaptação do ambiente ao indivíduo, criando novas circunstâncias para satisfazer as necessidades objetivas básicas.

No entanto, o homem não se limita a produzir apenas o essencial; ele também cria o supérfluo. Isso reflete o desejo humano não apenas de viver, mas de “viver bem”, buscando o “bem-estar”, que Ortega y Gasset descreve como “a necessidade das necessidades”, essencial mesmo para alcançar o que é supérfluo. Segundo ele, “o homem é um animal para o qual apenas o supérfluo é necessário” (p.21-22) e “a técnica é a produção do supérfluo” (p.22). Assim, “viver bem” apresenta uma variabilidade ilimitada, o que implica que as necessidades humanas também são extremamente variáveis. 

Mas o homem é homem porque para ele existir significa desde logo e sempre bem-estar; por isso é a natividade técnico criador do supérfluo. Homem, técnica e bem-estar são, em última instância, sinônimos. Outra coisa leva a desconhecer o tremendo sentido da técnica: sua significação com o fato absoluto no universo. Se a técnica consistisse somente numa de suas partes — em resolver mais comodamente as mesmas necessidades que integram a vida do animal e no mesmo sentido que possam sê-lo para este — teríamos um entrefino estranho no universo: teríamos dois sistemas de atos — os instintivos do animal e os técnicos do homem — que sendo tão heterogêneos serviriam, não obstante, à mesma finalidade: sustentar no mundo ao ser orgânico. Porque o caso é que o animal se arranja perfeitamente com seu sistema, isto é, que não se trata de um sistema defeituoso, em princípio. Não é nem mais nem menos defeituoso que o do homem. (ORTEGA Y GASSET, 1963, p. 22). 

Para Ortega y Gasset, a visão tradicional de técnica como uma entidade independente ou de progresso linear, geralmente associada a avanços tecnológicos ou estimulada por eles, é errônea. 

[É]…inútil querer estudar a técnica como uma entidade independente ou como se estivesse dirigida por um vector único e de antemão conhecido. A ideia do progresso, funesta em todas as ordens, quando se a empregou sem criticas, foi aqui também fatal. Supõe ela que o homem quis, quer e quererá sempre o mesmo, que os anelos vitais foram sempre idênticos e a única variação através dos tempos consistiu no avanço progressivo para a obtenção daquele único desideratum.

O esforço para poupar esforço é esforço

Através da tecnologia, o ser humano desenvolve novas formas de viver, como explorar os céus e comunicar-se remotamente, enquanto também minimiza esforços. Ortega y Gasset aponta que as condições de vida nem sempre facilitam ou obstruem completamente, mas oferecem tanto oportunidades quanto desafios, argumenta que o homem é essencialmente uma “aspiração ao ser”, não apenas um objeto. Cada pessoa, sociedade ou época interpreta essa aspiração de forma única, configurando-se como um projeto de vida diante de um conjunto específico de circunstâncias. Portanto, a vida humana é vista como um problema contínuo, onde cada indivíduo deve ativamente construir sua existência, semelhante ao papel de um técnico.

Atos técnicos — dizíamos — não são aqueles em que fazemos esforços para satisfazer diretamente nossas necessidades, sejam estas elementares ou francamente supérfluas, mas aqueles em que dedicamos o esforço, primeiro, para inventar e, depois, para executar um plano de atividade que nos permita:

1.° Assegurar a satisfação das necessidades, evidentemente, elementares.

2.° Conseguir essa satisfação com o mínimo esforço.

3.° Criar-nos possibilidades completamente novas produzindo objetos que não existem na natureza do homem. Assim, o navegar, o voar, o falar com o antípoda mediante o telégrafo ou a radiocomunicação.

[…] Na poupança de esforço que a técnica proporciona podemos incluir, como um de seus componentes, a segurança. A precaução, a angústia, o terror que a insegurança provoca são formas do esforço, da imposição por parte da natureza sobre o homem. 

Temos, pois, que a técnica é, assim, o esforço para poupar esforço ou, em outras palavras, é o que fazemos para evitar por completo, ou em parte, as canseiras que a circunstância primariamente nos impõe.

Assim, o mundo é visto pelo homem como uma base e uma ferramenta em potencial. A abordagem técnica, essencial para a expressão da identidade do homem, é precedida por um impulso mais fundamental que guia suas ações: os desejos estão alinhados com a pessoa que ele aspira ser. Quando esses desejos são comuns em uma cultura, eles moldam a tecnologia desenvolvida; culturas ascéticas, por exemplo, não focam em produzir alimentos sofisticados ou inventar carros, mas em técnicas que refinam o controle sobre o corpo e promovem o êxtase.

Ortega y Gasset também observa que a prática técnica evoluiu com as mudanças nos objetivos humanos ao longo da história, sugerindo uma cronologia que enfatiza a percepção das relações entre homem e técnica através dos tempos, distinguindo três grandes fases que indicam que o progresso técnico deve ser visto mais como uma evolução das concepções do que apenas invenções isoladas. São elas:

A técnica do acaso: Esta fase é caracterizada pela técnica primitiva do homem pré e proto-histórico, e dos povos “menos avançados” da atualidade, como os Vedas do Ceilão e os Semang de Borneo. Nesta etapa, o acaso desempenha um papel fundamental como o “técnico”, sendo a força motriz por trás das invenções. O humano não tem consciência de sua própria técnica e não percebe suas capacidades especiais de transformar a natureza em função de seus desejos.

A técnica do artesão: Esta fase é típica da Grécia Antiga, da Roma Pré-Imperial e da Idade Média. O artesão tem consciência da técnica, mas está ligado a uma tradição e a uma sequência de aprendizado, onde a invenção não é isolada como um fenômeno técnico, mas vista como uma extensão das habilidades naturais humanas. O artesão e o técnico são ainda uma única figura, e a técnica é uma habilidade transmitida através de gerações sem grandes inovações.

A técnica do técnico: Neste estágio “moderno”, a técnica se torna uma atividade distinta das habilidades naturais do homem. A técnica é vista como uma capacidade independente, ilimitada, destacando-se com o advento da máquina, que opera independentemente do operário. Esta fase caracteriza-se pela separação entre o técnico e o operário, com a máquina assumindo um papel primordial e transformando a relação do homem com a técnica. O técnico agora é alguém cuja principal função é inventar e aprimorar máquinas e processos, liberando o homem das limitações anteriores impostas pelas técnicas mais remotas.

Para finalizar 

A frase de Ortega y Gasset, “Eu sou eu e a minha circunstância”, toca profundamente em algo que todos nós sentimos: estamos entrelaçados com o mundo ao nosso redor, moldando-o enquanto ele nos molda. Esse texto clássico de Ortega y Gasset é um convite para vermos a técnica não só como uma coleção de ferramentas, mas como uma parte de quem somos.  Entender a técnica dessa maneira nos faz valorizar ainda mais a criatividade como força motriz da evolução humana. 

Olhando para o futuro, é vital que nos lembremos da grande responsabilidade que acompanha nossa habilidade de mudar o mundo com a técnica. As “Meditações” de Ortega y Gasset nos indicam buscar um equilíbrio entre criar novas tecnologias e manter os valores humanos que formam a sociedade. Será uma utopia juntar  tecnologia com a ética? 


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