Me atrevo a dizer que existem poucas experiências tão poderosas quanto uma boa leitura. Por mais que o escritor utilize técnicas, explore formas e queira se esconder, sua personalidade se escancara ali, palavra após palavra, escolha após escolha. Todo texto é um escancaramento de quem o escreveu, e das entrelinhas escorrem opiniões, humores e revelações.
Até aí, toda arte carrega a personalidade do seu criador. No entanto, o que torna o texto mais poderoso é sua acessibilidade. Ninguém precisa conhecer técnicas de escrita para desvendar as intenções de um autor; basta saber ler. Mesmo leitores primários são capazes de depreender um pedacinho da personalidade do autor.
Pensando assim, ao contrário da apreciação de artes plásticas ou de música, apreciar a leitura chega até a ser algo banal — tão banal que qualquer outra atividade, na opinião de muitos, é mais interessante do que os livros.
A ironia é que os livros têm o poder de nos ensinar a viver melhor no mundo. Quanto mais lemos, mais experiências, relatos e simulações somamos ao nosso arsenal de possibilidades sobre como enfrentar nossas questões mundanas.
Se você já leu o livro que se encaixou perfeitamente à situação que estava vivendo, tenho certeza de que sabe sobre o que estou falando — e se escolheu esse livro ao acaso, melhor.
A mim, exemplos não faltam. O último deles foi Encaixotando minha biblioteca, do Alberto Manguel. Eu e o Menin tínhamos acabado de nos mudar, então fomos à livraria para espairecer um pouco. Quando me deparei com o título, logo percebi que aquele livro havia me encontrado.
Alberto Manguel é um ávido leitor e possui um extenso trabalho sobre a importância da leitura. Mas, apesar de outro livro dele já fazer parte da minha lista de favoritos, eu não fazia ideia do encontro que estava prestes a acontecer entre leitora e leitura.
Em 2015, Alberto Manguel morava com seu companheiro em um antigo presbitério de pedra em Loire, um povoado tranquilo na França. Por motivos não esclarecidos no livro, Manguel é convidado a deixar o país após 15 anos de estadia — e, para isso, ele terá que encaixotar sua biblioteca com cerca de 35 mil livros.
Empacotar e desempacotar são duas facetas do mesmo impulso, e ambas dão significado a momentos de caos.
Alberto Manguel, em Encaixotando minha biblioteca
Enquanto encaixotava sua biblioteca, o autor refletia e escrevia sobre a sua experiência. Ao ler seu relato, conheci um senhor de 70 anos obrigado a desfazer seus planos de viver na casa que escolheu para passar o resto da vida, empacotando aquela imensa biblioteca, rememorando e ressignificando as relações invisíveis entre os livros. Aquele homem, que tinha todos os motivos para ter apego material e se rebelar contra a realidade que lhe era imposta, me ensinou uma pesada lição sobre impermanência.
Mas a generosidade de meus livros está sempre lá, como parte de sua natureza, e, ao retirá-los de suas caixas, apesar de terem sido condenados ao silêncio por tanto tempo, eles ainda se mostram bondosos comigo.
Alberto Manguel, em Encaixotando minha biblioteca
Isso tudo só aconteceu porque ele escreveu um livro e esse livro, depois de uma longa jornada, me encontrou exatamente quando eu precisava lê-lo.
Tenho quase certeza de que Alberto Manguel nunca saberá o que seu livro causou em mim — e isso é parte do jogo de ler, escrever e publicar. A troca, tão pessoal e ao mesmo tempo tão distante, das experiências que partilhamos no silêncio das palavras; soltas das amarras do tempo e do espaço; dependentes apenas da nossa imaginação.
Se há um caminho para fazer as pessoas se encontrarem com a sua criatividade, ele com certeza passa pela leitura. Em uma palestra, o professor Pierluigi Piazzi, ao contar como fez seu filho se interessar pela leitura, fala a seguinte frase:
Existem milhões de livros no mundo, por um deles você vai se interessar.
Sem dúvida, ele tem razão. Leitores e livros não precisam ser ideais, apenas precisam se encaixar nesse encontro de mentes que o revirar das páginas proporciona. Se um livro for chato, largue-o e comece outro. Faça isso até encontrar o livro que mexa com você — e então você terá encontrado o gosto pela leitura.
Mas, como mencionei antes, no mundo de hoje tudo é mais divertido do que pegar um livro e passar horas lendo. Ler exige concentração, e estamos todos meio avoados entre telas, informações e problemas sérios da vida prática. Ler é cansativo, e nós estamos todos meio cansados demais depois de tanto trabalho ou estudo, sem energia para uma boa leitura. Ler, para muitos, não é sequer sinônimo de descanso, de entretenimento ou de diversão.
Sei que os clubes de leituras aumentaram muito durante a pandemia e que tem muita gente boa — e que inclusive acompanha o Lambrequim — que entende bem do que estou falando e faz a sua parte para promover o hábito da leitura. Porém, todos sabemos que no nível individual há muito a ser feito.
Há encontros, descobertas e sentimentos que só desvendamos através da leitura. No entanto, não importa quantos livros você já leu, é quase impossível prever qual livro promoverá a tal epifania. Então o que nos impede de dar mais livros de presente? Por que ao invés de querer agradar as pessoas, nós não damos a elas uma possibilidade de descoberta?
Nossas ações precisam ser justificadas pela literatura, e a literatura deve prestar testemunho de nossas ações. Por isso, agir como cidadãos, em tempos de paz ou de guerra, é em certo sentido uma extensão de nossa leitura, uma vez que os livros contêm a possibilidade de nos guiar, graças à experiência e ao conhecimento de outras pessoas, oferecendo-nos a intuição de um futuro incerto e a lição de um passado imutável.
Alberto Manguel, em Encaixotando minha biblioteca
Em uma realidade repleta de objetos úteis, bonitos e mais divertidos, os livros se tornam objetos ainda mais elitizados, acessíveis apenas às pessoas que possam compreendê-los ou que tenham tempo disponível para apreciá-los.
Cabe a nós trabalhar de forma incansável para que os livros sejam objetos comuns na vida de cada vez mais pessoas. Os sebos estão repletos de títulos a preços acessíveis; existem inúmeros programas que distribuem livros de graça. Nós, que já amamos os livros e reconhecemos o seu valor, somos seus guardiões diários, as pessoas através das quais novos encontros acontecerão.
É claro que a literatura não pode salvar ninguém da injustiça, das tentações da cobiça ou das desgraças do poder. Mas algo nela deve ser perigosamente eficaz, já que todo governo totalitário e todo alto funcionário ameaçado tentam eliminá-la queimando livros, proibindo livros, censurando livros, aplicando impostos sobre livros, limitando-se a fazer de conta que respeitam a causa da alfabetização, insinuando que a leitura é uma atividade elitista.
Alberto Manguel, em Encaixotando minha biblioteca
Dê livros de presente. Diga ao presenteado que ele pode odiar a leitura na terceira página e largá-lo num canto. Diga que ele pode trocar aquele livro por outro, e por outros milhares, se tiver vontade. Só não o deixe parar de ler.
Alberto Manguel promoveu uma das inúmeras trocas que a leitura me proporcionou e ainda me proporcionará. Ele, como o ávido leitor que é, escreve porque reconhece o poder da troca. A epifania que ele me propiciou é minha e somente minha, no inexplicável emaranhado de sentimentos que hoje carrego. E é essa troca, tão genuína, que eu espero que seja vivida por todo mundo.
Quando estou numa biblioteca, qualquer uma, tenho a sensação de ter sido transportado a uma dimensão puramente verbal graças a um passe de mágica que nunca compreendi de todo. Sei que minha história completa e verdadeira está lá, em alguma parte das estantes, e só preciso mesmo de tempo e sorte para encontrá-la. Nunca consigo. Minha história permanece elusiva porque nunca é a definitiva.
Alberto Manguel, em Encaixotando minha biblioteca
P.S.: Um dia depois que terminei de escrever essa Cisma, li uma carta que recebi da Monique Bonomini na qual ela me contou como a leitura e a escrita têm transformado a vida dela desde 2017. Nessa feliz coincidência temática — que ela brincou, depois, dizendo que foram as energias da carta que influenciaram a Cisma — uma frase me tocou:
… sua generosidade na oficina e seus textos na coluna Cisma do Lambrequim só me mostram como a gente nunca está sozinho neste mundo, agradeço pela partilha!
Enquanto pudermos ler, publicar e partilhar, com certeza nunca estaremos sozinhos no mundo.