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woman sitting on chair while reading book

Leituras nada dinâmicas

DICAS INFALÍVEIS PARA LER ESTE TEXTO: vá para um lugar tranquilo; sente-se confortavelmente; esvazie o ar dos pulmões; se estiver lendo no celular, coloque-o no modo avião.

O e-mail me oferecia oito técnicas infalíveis para ler mais e melhor. A despeito da vontade de deletar, acabei clicando para ver. As dicas ensinavam a percorrer a página “como um scanner” (a fim de realizar uma leitura dinâmica), passando pela técnica de ler “grupos de palavras” (evitando a perda de tempo da leitura palavra por palavra, aparentemente já defasada…), até arrematar com a dica de ouro: evite reler trechos (se passou os olhos uma vez, não há porque voltar!). Fechei o e-mail com a sensação de que jamais seria um leitor dinâmico…

A oferta de cursos é imensa. Diversos programas com diferentes durações e metodologias prometem transformar qualquer leitor em um voraz devorador de parágrafos. A regra é clara: se há oferta, há demanda, então é desnecessário listar aqui as aplicações deste tipo de leitura a diversos segmentos profissionais ou educacionais. Deve ter até diploma de leitor dinâmico. Meu objetivo aqui, porém, é especular… Por isso, fiz a pesquisa inversa: quantos seriam os cursos ofertados às pessoas que querem desenvolver justamente uma leitura profunda? Bom, você pode adivinhar a resposta.

Uma pílula de leitura duas vezes ao dia

Sim, se você quer leitura profunda, vá ler um livro de ficção. Ninguém vai pagar para saber disso, não é mesmo? No máximo, encontrei convites para Clubes de Leitura, onde essa prática é incentivada por meio da leitura atenta que dará conteúdo à interpretação de cada participante, que será dividida depois com o grupo na forma de opinião. Os leitores dinâmicos serão capazes disso? Ok, desavenças à parte, nas pesquisas eu também encontrei inúmeros relatos de pessoas que necessitam reler um simples parágrafo para saber do que se tratava, pois perdem o fio da meada em algum momento. Quem nunca?

A leitura dinâmica (e fragmentada) é uma realidade contemporânea. Os estímulos que nos cercam fazem com que todos desenvolvam essa habilidade com cada vez mais naturalidade (com os efeitos específicos no cérebro, que ainda não temos distanciamento temporal suficiente para mensurar). Por isso, não vamos focar nela aqui. Pensemos nos benefícios da leitura profunda: desenvolver a concentração, servir de antídoto contra a rapidez da vida atual, diminuir a ansiedade, facilitar a absorção os conteúdos lidos, etc.

Você sabia que até o século XIX era comum que psiquiatras receitassem livros de literatura para curar as “doenças da vida”? A biblioterapia chegou a constar no Publisher’s Illustrated Medical Dictionary, o dicionário médico dos Estados Unidos, em 1941.

Leia menos (e melhor)!

A razão de existir deste texto é fazer com que você não volte ao início do parágrafo anterior (e que também não o abandone pela metade…). O primeiro passo? Este texto não contém links que o levam a outros lugares (peço desculpas à editora…). Estamos aqui e aqui ficaremos. Leitura profunda é (também) isso.

Segundo: leia palavra por palavra (como faziam nossos antepassados), para que assim possa assimilar que a leitura profunda auxilia, inclusive, na sua capacidade de empatia. A relação não é óbvia, nem direta, mas acredite em mim quando eu escrevo que ocorrerá uma transformação no seu cérebro ao ler a seguinte frase:

Carro parado na beira de uma estrada

A metamorfose já começou. Independente da cor do carro, do motivo de estar parado e de qual é a estrada de que estamos falando, o seu cérebro e o meu já saíram do piloto automático que o dinamismo evoca. Ainda não há um enredo (e nem haverá), mas há a sugestão, há a brecha que será preenchida necessariamente pela leitura (lembra da anedota que pedia para que você NÃO pensasse no elefante branco?). Quando você preenche a frase vaga que sugeri acima, está realizando um exercício (natural) de tentar compreender minhas intenções, o que levará, ao fim e ao cabo, e numa escala social, ao desenvolvimento da empatia. Simples assim?

Aprofundando a imaginação

Agora você pode até se dar ao luxo de voltar ao parágrafo anterior. Sim, é claro que você o compreendeu, mas a leitura profunda exige (também) isso: voltar atrás, rever, será que o autor quis mesmo dizer aquilo que eu entendi? Isso não importa.

O que vale é saber que estamos prontos, então, para o terceiro passo (nesta fictícia e gratuita introdução ao meu curso de leitura profunda para iniciantes e iniciados): se tudo deu certo, neste exato momento não há mais nada ocupando a antessala do seu córtex cerebral, seus batimentos cardíacos diminuíram, você relaxou e sua criatividade foi estimulada e saiu preenchendo espaços à revelia de sua razão.

Talvez seja a hora perfeita para dizer que a imaginação, para nós, humanos, é uma espécie de face refletida do instinto: ambos nos controlam a revelia, tão logo a situação ideal se apresente. Assim como corremos se o perigo vem, também criamos histórias a partir de sugestões (mínimas) que chegam até nós.

Eu deixei o carro lá na beira da estrada. Não falei se é noite ou dia, se chove ou venta, se está no acostamento da BR ou na Graciosa. É que o texto já está longo demais, sabe? Então, deixo a seu encargo completar (ou não) essas lacunas. Na pior das hipóteses, esse texto já extraiu você (e a mim) do piloto automático do dinamismo.


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