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Literatura, antídoto contra o obscurantismo

por Patricia Dias

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Atônitos diante das demonstrações de selvageria e extremismo nos últimos tempos, lutamos para manter a sanidade e buscamos justificativas e explicações. Como se sabe, não existe uma causa direta, pois trata-se de um fenômeno complexo que envolve inúmeros fatores. Vou me limitar a explorar o que compete a essa coluna, ou seja, a relação entre leitura e política.

Para começar, qual a relação entre literatura e política?

A resposta a essa questão envolve entender a literatura como uma forma de arte pautada na liberdade, universalidade e plurissignificação. O autor é livre para, através da manipulação da linguagem, construir seu texto ficcional sem caráter utilitário. A universalidade de uma obra corresponde a representação simbólica — aquilo que depreendido do texto ultrapassa barreiras históricas, geográficas, temporais, etc. São os conteúdos míticos, arquetípicos, que acompanham o percurso histórico da humanidade. A plurissignificação diz respeito a ambiguidade e possibilita a abertura para diferentes interpretações. O autor empresta significado ao texto e na relação texto–leitor outras possibilidades se abrem. A multissignificação assegura a riqueza, a permanência e a atemporalidade de uma obra literária.

A partir dessas características é possível entender o caráter humanizador da Literatura, mencionado por Antonio Candido, “a literatura, portanto, nem corrompe nem edifica, mas, ao trazer livremente em si mesma o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, pois faz viver”.  

Abordei em outras edições desta coluna as funções da arte — entre elas a humanização de que nos fala Candido, e a escolha pelos livros de não-ficção (as famosas leituras que agregam) em detrimento aos romances. São reflexões que ajudam a pensar o papel da literatura no momento atual.

Em termos mais práticos, cito o meu processo de escolha de uma nova leitura.  Ao buscar um livro, seja para leitura pessoal ou para discussão nos clubes, não procuro por livros que corroborem minhas crenças e forma de pensar. O que eu busco é exatamente o oposto disso. Escolho livros desconcertantes, que abalem minhas certezas, que derrubem estereótipos. Concordo com a autora argentina María Teresa Andruetto quando diz que “um bom livro nunca é politicamente correto, um bom livro é sempre um incômodo”. Eu gosto de ser incomodada por um livro. Aprecio a sensação da cabeça borbulhando após uma leitura desafiadora, e o exercício de reorganizar as ideias a partir de novos e velhos conceitos.  Procuro não escolher obras com finais fechados e respostas únicas, prefiro finais abertos que lancem perguntas.

Para Maria Teresa “a literatura nos propõe, no transcurso da leitura, riscos, lutas e, sobretudo, o enfrentamento de nossas carências. Ela não nos oferece soluções, mas diríamos que nos sugere perguntas, porque problematizar o que nos foi naturalizado é uma das funções da arte; questionar o aceito, receber nossas sombras, os riscos da vida que vivemos e da sociedade na qual transitamos”. 

Uma das grandes lições que a Literatura dá aos leitores (embora o faça sem intenção didática) é dar ciência de que não há uma única verdade, despertando, assim, um olhar atento e problematizador — premissa fundamental para a vida e para iluminar os conflitos políticos.

O leitor experiente, através de personagens complexos, compreende que não existem mocinhos ou vilões. Ao subvertermos a polaridade bem versus mal, nos aproximamos da nossa humanidade. Com os “narradores não confiáveis” aprendemos a duvidar de tudo, questionar e buscar novas opiniões sobre um mesmo fato.  

Para Andruetto: “A literatura nos propõe inquietação, insatisfação, intempérie. Seu território não é o geral, mas o particular. Em seu mundo vivem a dúvida, as indecisões, as dificuldades de compreensão, que são todas estratégias necessárias para pensarmos por nós mesmos, coisa sempre tão difícil. A literatura não nos leva à simplificação da vida, e sim à sua complexidade, evitando o pensamento global, uniforme, para ir em busca da construção de um pensamento próprio.”

Sobre o olhar e escuta atentos — tão em baixa neste período de ânimos exaltados, Andruetto revela: “ao escrever, enfrento meus preconceitos, me questiono, e gostaria que meu leitor, seja ele adulto ou criança, também se questionasse caso fosse levado a tomar uma posição. A escrita provém de um olhar e de um escutar intensos”.

Somos bombardeados por fake news e discursos de ódio, sem espaço para o diálogo e a troca de ideias. Em meio ao bombardeio de notícias falsas e meias verdades, sinto falta da postura do leitor crítico, que escava o texto em busca de evidências, que duvida do narrador, que procura o sentido das metáforas, que lê nas entrelinhas, que vai a fundo no que o autor quis dizer. 

O autor Cristovão Tezza, explica que “um dos traços da literatura é capacidade de apreender o mundo por um olhar que não é o nosso; ser capaz de se transportar para outros pontos de vista e conhecer o mundo pelo lado de lá. Nenhuma outra linguagem tem esse poder. Um ensaio, um artigo, são unilaterais. Já a literatura dá essa transcendência”. Ao vivenciar essa transcendência enquanto lemos, nos tornamos mais aptos ao debate de ideias e menos ao confronto. 

Infelizmente, vivemos o oposto disso — a visão unilateral e a cegueira ideológica. Tezza, com sabedoria, complementa: “O homem de um livro só é um sujeito perigoso, o homem que não tem dúvidas. Se fia naquele caminho, naquele cânone, não enxerga, não busca outras possibilidades. Dogmático. Para ser crítico não pode ser orientado por uma única perspectiva. Não existe uma verdade absoluta e sim a construção imagética de uma”.

Como o título desta coluna é Leitura & Alento, compartilho uma brisa de esperança. Essa semana, na reunião de pais do colégio da minha filha sobre o novo Ensino Médio, foram divulgadas as disciplinas para o segundo ano, e uma me chamou especial atenção: Observatório Político e Social. A coordenadora comentou que a base dessa disciplina será a literatura. “Onde eu me inscrevo?”, pensei. Além de passar vontade, fiquei bastante animada com a iniciativa envolvendo literatura e formação política e social — coisas em que tanto acredito.  

Ler literatura, segundo Andruetto, promove “uma das mais profundas imersões em nós mesmos e na sociedade da qual somos parte”. Dia 30, além da disputa eleitoral, é o aniversário da minha filha, mais um motivo para ter esperança — no 13 e nas próximas gerações. 


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