Quanta importância devemos dar, ao longo da produção artística, aos prazos que nos propomos a cumprir? Hoje quero te contar uma história muito pessoal, que envolve promessas, leitores, dinheiro e trabalho em equipe.
Sou apaixonada por financiamento coletivo. Produzi quase todos os meus livros publicando projetos na plataforma Catarse e recebendo apoios financeiros de pessoas — conhecidas ou não — que acreditaram na ideia. Desde 2014, viabilizei um projeto por ano, e estava duplicando a produção em 2018, quando meus planos começaram a dar errado.
Quem vive arte sabe que um dos maiores desafios (senão o maior) é criar um sistema que possibilite dedicação exclusiva ao ofício escolhido. Em 2018, viabilizar projetos através do Catarse (assim como ter uma base de leitores, vender meus livros em eventos e ministrar oficinas) era parte essencial do meu sistema. Mas, apesar de eu ter financiado duas novas histórias em quadrinhos naquele ano, não consegui entregar nenhuma delas, conforme havia prometido nas campanhas.
Se você já apoiou algum projeto de financiamento coletivo, sabe que o prazo de entrega é o contrato silencioso entre o realizador do projeto e seus apoiadores. Ao quebrar esse contrato por duas vezes, por motivos totalmente fora do meu controle, meu sistema começou a se quebrar também.
Para quem não conhece, o financiamento coletivo funciona assim: o realizador tem uma ideia (de livro, de produção cultural, de criação de conteúdo, de ação social, etc), elabora um projeto na plataforma de sua preferência, publica-o e começa divulgá-lo para todo mundo — seguidores, influenciadores, mídia especializada, familiares, amigos… Enfim, quanto mais gente, melhor. Dentro do projeto, o realizador tem a possibilidade de definir as recompensas aos apoiadores e os prazos de entrega dessas recompensas — assim, quem investe no projeto sabe quando receberá a recompensa escolhida, caso o realizador atinja a meta.
No final de 2018, eu tinha cerca de 400 pessoas esperando por duas publicações que não ficaram prontas dentro do prazo — e eu simplesmente não podia fazer nada para contornar isso. Além da avalanche de emoções que me invadiu (ansiedade, medo, derrota), experimentei uma das maiores vergonhas da minha vida: ter prometido algo grande, colocando meu nome e minha carreira como avalista, e não ter conseguido cumprir.
Brene Brown, no livro a Arte da Imperfeição, diz que “a vergonha precisa de três coisas para escapar do nosso controle: segredo, silêncio e crítica”. Não sei você, mas eu sou ótima em ficar quieta me criticando.
Quando encarei o fato de que exporia meu trabalho na CCXP, um dos maiores eventos de quadrinhos da América Latina, sem nenhuma das publicações prometidas, tudo o que eu queria era me esconder em um buraco no fundo da terra para nunca mais sair. Encarar as pessoas e verbalizar, olhando nos olhos delas, que havia deixado de cumprir não uma, mas duas das promessas que havia feito era como arrancar um pedaço da minha carreira e pisoteá-lo, repetidas vezes.
Sem escolha, tive que enfrentar a situação. O que eu não imaginava, no entanto, é que essa vergonha se arrastaria por anos, se tornando um fardo secreto que eu continuo a carregar.
Para Brene Brown, a vergonha está relacionada ao medo, à culpa e à desconexão. Como a autora aponta em seu livro, uma das reações à vergonha é se recolher, se esconder — e eu me escondi. Parei de buscar novos leitores, de falar sobre o que estava produzindo ou sobre outros projetos autorais; silenciei porque havia traído a confiança depositada em mim. Passei a me esconder em outros mundos — das oficinas de escrita, da Têmpora Criativa; mundos que não envolviam lançar uma nova publicação antes de entregar as prometidas. O único livro impresso que eu consegui publicar nesse período foi o Guia de Roteiro — e ainda o lancei meio escondido, quase em segredo.
Como roteirista de histórias em quadrinhos, preciso de ilustradores para transformar meus roteiros em narrativas gráficas. Dito isso, sempre defendo que cada processo criativo tem um tempo para acontecer — e com os ilustradores não é diferente. Independente dos motivos que causaram o atraso na produção dessas duas HQs, eu entraria em contradição se não respeitasse o processo das ilustradoras com quem estava trabalhando. Só que, nessa espera toda, eu travei.
“Ninguém pode definir o que é significativo para nós. (…) Assim como nossos dons e talentos, a importância de um trabalho é absolutamente pessoal”, lembra Brene Brown. Sem dúvida, publicar o que escrevo é significativo para mim, mas, apesar de ter produzido muito nos últimos três anos, pouco publiquei, mesmo na internet. Seja pela vergonha de dizer que estava trabalhando em algo novo, seja pela cobrança inconsciente, o fato é que enquanto não concluo o ciclo anterior, não consigo iniciar outro.
Consegui lançar o Doce Jazz, uma das HQs financiadas em 2018, no final de 2019. O resultado ficou lindo e eu tenho muito orgulho de ter acreditado no projeto até o fim, mas não consegui aproveitar o lançamento do livro; uma nuvem negra me envolvia.
Três meses depois do lançamento, a pandemia começou e, com ela, todas as lições que aprendemos sobre prioridades na vida. Apesar das circunstâncias, consegui me reequilibrar nesse período e encontrar pessoas como você, que leem o que escrevo e acompanham o meu trabalho. Mas, mesmo assim, continuo travada; lembrete de que é impossível seguir em frente enquanto um ciclo anterior segue em aberto.
A boa notícia é que esse ciclo está prestes a se fechar. Zahira: um conto Al-Andalus, a segunda HQ que financiei em 2018, está em fase final de produção. Agora basta revisar as falas, fechar o arquivo e enviá-lo para a gráfica. Com as recompensas entregues, terei cumprido com a minha promessa.
Vislumbrar o fechamento de um ciclo que arrasto desde 2018 me dá a segurança de sonhar com novos projetos, novas campanhas do Catarse, novas publicações; como se eu despertasse de um sono induzido. Em breve, não precisarei mais ter vergonha de falar sobre os outros livros que quero publicar, sobre as outras campanhas que quero fazer (autorais e da Têmpora) porque já terei pagado minha dívida.
Acredito que existem dois universos da criação artística: o público e o privado. O público é, obviamente, composto pelo que o artista publica nas suas redes, nos seus sites, nos seus livros. Já o privado é o do dia a dia da produção, que envolve, entre outras questões, o âmbito psicológico — e é aqui que os problemas ganham força e proporção. Por mais banal que a motivação desse meu bloqueio possa parecer, foi o que aconteceu aqui dentro.
Apesar de eu ter travado por quase três anos, não posso ignorar as lições que aprendi nesse tempo — sobre trabalho em equipe, sobre produção autoral, sobre como lidar com as expectativas (minhas e dos outros) e, principalmente, sobre como não deixar uma experiência ruim estragar todo o resto. Só porque algo não saiu como eu esperava, não significa que preciso desistir de um formato, de uma linguagem ou de uma ideia. Continuo acreditando no potencial do financiamento coletivo, no encanto das histórias em quadrinhos e nas possibilidades do trabalho em equipe — só que, agora, com mais maturidade e bagagem para encarar as surpresas no caminho.
Publicações engavetadas, estou voltando! Espero que você, leitor, tenha espaço na estante para todos os livros, meus e da Têmpora Editora, que estão por vir.