Lambrequim logo newsletter

a newsletter de cultura e tecnologia da Edições Tempora

purple and blue light digital wallpaper

No umbigo-histórico do mundo

O frio de Cuzco foi certamente o maior frio que já me acometeu. Um frio maior mesmo, na falta de palavra melhor – frio a ponto de gelar os ossos, e esse é o único jeito que disponho para descrevê-lo. Ao comprar um chullo em uma das inúmeras bancas dispostas no centro da histórica cidade, reclamei do clima e uma senhora disse algo do tipo: en Cuzco todo es más grande.

Séculos atrás, quando os espanhóis ainda não haviam dizimado a América com gripe e pólvora, o Imperador Inca comandava seus dez milhões de súditos a partir da capital, Cuzco ou, no idioma quéchua: o umbigo do mundo.

Alguns anos depois de comprar o chullo para aplacar o frio cusquenho, em uma gelada noite curitibana leio uma palavra em um poema que me expulsa o sono. Segue um trecho do poema:

(...) Soube então que faltavam geleiras às morsas
E que elas agora se viravam nas pedras
Amontoadas, que algumas subiam as montanhas e
O resultado já disse
Elas caem e fica parecendo que eu
Odeio a humanidade.

Aqui você pode conferir o poema na íntegra e conhecer melhor a poeta que o escreveu, Adriane Garcia (@adriane_garcia_poemas). Para além das potentes imagens construídas ao longo do livro Estive no fim do mundo e me lembrei de você, o poema acima me fisgou desde o título: Antropoceno. Tive a sensação de já ter lido tal palavra em algum lugar. Imediatamente recordei de Cuzco, de sua rica história e de seu paupérrimo presente.

Antropoceno, a seu dispor

Descubro que, desde o início deste século, integrantes das mais distintas comunidades científicas do mundo manejam o vocábulo em palestras, estudos e apontamentos. Estaríamos vivendo, afirmam eles, um período histórico cujas mudanças climáticas ocorrem em decorrência da humanidade, portanto, não mais (apenas) naturais. Ao contrário dos períodos anteriores, quando a natureza dava as cartas nos rumos climáticos terrestres, o Antropoceno seria a era em que as pegadas da humanidade pelo planeta não podem mais ser apagadas. Somos nós quem damos as cartas agora – ainda que neste baralho faltem naipes e que as regras do jogo tenham sido alteradas.

                Sim, em pleno 2023 essa afirmação nem soa alarmista, na verdade é bastante óbvia (salvo para aquele seu tio que diz que falar em aquecimento global é coisa de comunista). Afinal, todos sabemos o quanto o capitalismo ser humano pintou e bordou por estas bandas. Incrivelmente, porém, essa discussão já cruza duas décadas sem que os cientistas derrubem o Holoceno (que ainda é o período vigente, e que começou há uns doze mil anos). Não há consenso. E o motivo não é apenas político.

À rocha voltaremos

Em geologia, para que os períodos históricos sejam definidos, uma série de premissas precisa ser cumprida. A mais importante delas diz respeito à cristalização sedimentária de uma época, algo que alcance extensão planetária. Uma nova camada geológica, como uma era glacial ou conjuntos fossilizados. Isso costuma levar milhares e milhares de anos para acontecer (normalmente milhões).

Costumava ser assim até o homem moderno decidir entrar na jogada e acelerar a coisa toda, adicionando camadas sedimentares em questões de séculos – alguns sustentam que o Antropoceno tem deixado seu rastro mais evidente desde que o motor a combustão deu o ar da (des) graça, em 1872, o que em questão de história da Terra é o mesmo que ontem. Tudo que produzimos ficará gravado na rocha (realmente ao pó voltaremos), deixando marcas aos pesquisadores do futuro.

Em suma, camadas geológicas são como capítulos de um grande livro da Terra. Cada novo capítulo, porém, só pode ser lido pelo futuro. Essa é a questão. Tentar ler a História com os mesmo olhos de sempre não parece muito sábio. Para os incas, Cuzco era o umbigo de um mundo que se estendia do Equador até o Chile, e isso não impediu o assalto espanhol, que levou riquezas e dizimou parte da cultura inca – embora não tenha sido capaz de roubar dos cusquenhos a sensação de viver no centro do mundo .

Minha tão grande culpa

Até hoje, os períodos registrados nos livros de geologia foram catalogados por cientistas de um tempo com olhos voltados para o passado. O aquecimento global já sedimentou suas marcas na crosta terrestre que será avaliada pelos geólogos do futuro? É como se a ciência contemporânea olhasse para dentro de si, para um umbigo imaginário, fitando o presente ainda sem entendê-lo.

Especulação otimista: olhar para o umbigo, dessa vez, talvez seja importante. Se o Antropoceno se tornar consensual, constar dos livros didáticos e for aceito formalmente pela comunidade científica e política, será um grande mea culpa da humanidade, a aceitação de um protagonismo indesejado, e a maneira como vamos cuidar do ambiente ao longo deste século mudará sensivelmente. Especulação pessimista: levaremos ainda algumas décadas ocupados com o nosso umbigo, convictos de que somos más grandes que a própria História.

PS: Enquanto escrevia este texto, não pude deixar de lembrar desta música do Karnak:

Nós somos o umbigo do mundo!
Eu era convencido
Agora não sou não
Porque cheguei à perfeição

Publicado

em

por