Estou em um daqueles estados de não saber por onde começar; um limiar entre a trava e o desejo de escrever. Me pergunto se tenho mesmo algo a dizer hoje ou se deveria ficar calada. Quero escrever, mas sou incapaz de vencer o silêncio dentro de mim — o adorável e inquietante silêncio. Então pego o caderno, o lápis, sento-me no sofá e começo a escrever sobre não saber o que escrever até avistar a ponta de um fio: o medo de silenciar.
Cercados por livros, ideias e criações, nós vivemos com medo do silêncio — venha ele de dentro ou de fora. Medo de ficarmos solitários, isolados, incapazes de ouvir qualquer coisa além da nossa própria respiração. Se você duvida, tape bem os ouvidos, feche os olhos e marque quanto tempo você consegue ficar sentado e fechado em uma sala escura (só não vale dormir). A não ser que você seja um meditador experiente, duvido que consiga se manter confortável por mais de cinco minutos.
“Nós”, seres humanos, somos antes de mais nada o sujeito que observa este mundo, e autores, coletivamente, desta fotografia da realidade que tentei compor. Somos laços de uma rede de trocas, da qual este livro é uma pecinha, em que nós transmitimos imagens, instrumentos, informações e conhecimento. Mas, do mundo que vemos, somos também parte integrante, não somos observadores externos. Estamos situados nele. Nossa perspectiva dele se origina de dentro. Somos feitos dos mesmos átomos e dos mesmos sinais de luz trocados entre os pinheiros nas montanhas e as estrelas nas galáxias.
Carlo Robeli, no livro Sete breve lições de física
Carlo Roveli é físico teórico e ilustra muito bem em seu livro Sete breve lições de física como o homo sapiens se comporta tal qual tudo mais universo. Nós somos troca de energia, por isso tememos a possibilidade de deixar de trocar. Trocamos como se nossa vida dependesse disso — e, no fundo, depende. Nós só chegamos até aqui, como sociedade organizada, por causa das nossas trocas.
Mas se nós realizamos trocas como todos os outros seres no mundo, por que os outros animais não reagem como nós reagimos ao silêncio e à solidão? Yuval Harari, na sua palestra Why humans run the world, dá a resposta: porque nós, seres humanos, somos os únicos animais capazes de cooperar de forma flexível e em grandes grupos. Apesar da nossa perspectiva de mundo se originar de dentro, tal afirmou Roveli, individualmente somos incapazes de sobreviver — assim como as abelhas e os chimpanzés. Mas, como próprio Harari brinca, as abelhas, apesar de numerosas, não planejam o assassinato da rainha; muito menos chimpanzés, apesar de organizados, não lideram movimentos sociais. Apenas os homo sapiens são capazes de cooperar uns com os outros em grandes grupos sem ter a necessidade de conhecer cada membro — e o fator responsável por isso é a nossa barulhenta imaginação.
A necessidade que sentimos de nos relacionar e de fazer barulho no mundo não só nos fez sobreviver até aqui como é algo inerente à nossa espécie. Por isso o silêncio nos incomoda; porque permanecer em silêncio vai contra a nossa própria natureza. Como famintos, prosseguimos em nossa busca incansável por outros homo sapiens que pensem como nós, nos compreendam e com quem possamos fazer trocas materiais dos mais variados níveis. Nossa sobrevivência depende da comunicação, da troca de ideias e experiências.
A grande vantagem da imaginação, apontada pelos autores do livro Como o cérebro cria, é a de nos permitir experimentar cenários possíveis para as mais diversas situações. Fazemos isso o tempo inteiro, sozinhos ou em grupo, com os mais diversos objetivos. Sem a necessidade de precisar ir lá e fazer, economizamos energia para trocas mais significativas e experiências que resultem o mais próximo possível do que esperamos.
No entanto, se fomos moldados para trocas e nos beneficiamos com o barulho, por que existem tantos que cultivam silêncio? O próprio Harari já afirmou, em mais de uma ocasião, que medita duas horas por dia.
Dentre os inúmeros cenários que imaginamos, selecionamos um e o executamos. Algumas vezes, tais escolhas são conscientes, mas em outras (como já abordei em uma Cisma anterior), realizamos escolhas sem notar o caminho mental que percorremos. Ignorantes das associações que originaram a percepção do mundo vinda de dentro, nos tornamos autômatos ansiosos, confusos e depressivos.
Ao nos impormos numerosas tarefas e padrões rígidos, cultivar momentos de silêncio pode significar a derrota da produtividade. No entanto, não ter o que dizer é um bom sinal. Afogados em nossos pensamentos, preocupações e compromissos, silenciar a voz interna e entrar em estado de contemplação é cada vez mais raro.
Não é só por que o silêncio interno é inquietante que ele deva ser evitado. Se hoje vivemos em uma sociedade positiva — como aponta Byung-chul Han no livro Sociedade do cansaço — em que todos devemos ser produtivos e felizes o tempo todo, é porque estamos nos afastando cada vez mais do ócio, da contemplação e do nada fazer. Talvez, com nossos velozes meios de comunicação e nossas exigências sociais, nós não sejamos mais capazes de ficar fazendo nada sem sentir uma pontinha de culpa.
Como seria se a humanidade inteira concordasse em diminuir a produtividade, ao invés de aumentá-la, ano após ano? Será que conseguiríamos viver em uma sociedade mais negativa, na qual o silêncio e a contemplação deixariam de ser fontes de culpa?
(Você pode parar de ler aqui para imaginar todos os cenários possíveis).
Acho improvável que os homo sapiens entrem em acordo para uma negatividade mundial, mas desacelerar é preciso. Se há um ponto em comum nas reflexões de Yuval Harari e Byung-chul Han é que nossa melhor arma na sociedade barulhenta é cultivar momentos de silêncio interno. Contemplar e meditar são práticas que nos ajudam a desenvolver o autoconhecimento para que, quando o mundo nos golpear com suas exigências, nós possamos reagir ao golpe da melhor forma possível.
Mas é claro que aqui preciso dizer o óbvio: é mais fácil falar do que fazer. Se eu comecei essa Cisma dizendo que tinha um silêncio interno e não sabia sobre o que escrever, por que não fiquei quieta, aproveitando? Bem, em parte porque me propus escrever algo hoje; em parte porque percebi o potencial de escrever sem o habitual falatório interno. Naturalmente, escrever nesse estado demorou muito mais: nesse cavoucar de assunto, um trabalho que levaria duas horas já engoliu cinco horas entre buscas por referências, apreciação de músicas do Ludovico Einaudi e longas contemplações da paisagem urbana pela janela.
Há pouco, enquanto pensava na frase anterior, vi um improvável beija-flor buscando o invisível (a mim) nas árvores. “Que sorte ver um desses numa área com tão poucas árvores” pensei. Mas não, não foi sorte; era só eu que não tinha parado para contemplar.